quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Natal: festa do que?

O Natal, no Brasil, já não é uma celebração cristã. É um evento antropológico.

Não se cultua o Cristo; cultua-se o EU.

Jesus aparece apenas como álibi retórico, um selo religioso para legitimar a festa do excesso, da autopermissão e da hipocrisia social.

A cena é conhecida: mesas monumentais, álcool em abundância, música alta — não raro com letras que fariam corar qualquer catequista — e discursos inflamados sobre “o verdadeiro sentido do Natal”.

O verdadeiro sentido, ao que parece, é não se conter. A virtude teológica do domínio próprio foi substituída pela virtude pagã do “mereço”.

Cristo nasce pobre, discreto, fora do centro do poder.

O Natal moderno nasce barulhento, autocentrado e profundamente vaidoso. 

Não é o culto ao Deus que se faz homem; é o culto ao homem que se faz deus por uma noite.

O cristianismo do presépio foi trocado pelo cristianismo do espelho.

Fala-se em Jesus, mas pratica-se outra religião: a da satisfação pessoal. O mandamento não é “amar ao próximo”, mas “não me julgue”.

A ética do Evangelho, que exige renúncia, virou um detalhe inconveniente. Afinal, quem quer um Cristo que confronte hábitos, denuncie excessos e exponha incoerências?

O curioso — ou trágico — é que essa hipocrisia não é percebida como tal. O discurso religioso serve como anestésico moral.

Brinda-se “ao menino Jesus” enquanto se ignora tudo o que ele ensinou depois de crescer. O nascimento é celebrado; a mensagem, arquivada. O presépio é montado; o Evangelho, silenciado.

Trata-se de um cristianismo sem cruz, sem exigência e sem transformação. Um cristianismo de ocasião, domesticado, que não incomoda consciências nem desafia estruturas.

Jesus, nesse contexto, não é Senhor — é figurante. Serve para enfeitar, não para governar.

Talvez por isso o Natal precise ser tão barulhento. O silêncio, como sempre, é perigoso. No silêncio, alguém poderia lembrar que aquele que nasceu numa manjedoura jamais confundiu fé com festa, espiritualidade com excesso ou amor com autopromoção.

No fim, o problema não é a ceia, nem a música, nem a celebração em si.

O problema é chamar de cristão um culto que tem o homem no centro e Cristo na moldura. Isso não é Natal. É apenas mais uma reunião em homenagem a nós mesmos — com Jesus como convidado que ninguém escuta.


Ao culto do eu soma-se outro fenômeno ainda mais grave: a instrumentalização da  por um projeto político que transformou o cristianismo em plataforma de ressentimento.

Não se trata mais apenas de esquecer Jesus — trata-se de usá-lo contra tudo o que ele ensinou.

bolsonarismo não criou essa hipocrisia religiosa, mas deu a ela método, linguagem e agressividade. Onde o Evangelho propõe amor ao próximo, introduziu-se o ódio como virtude cívica. Onde Jesus ensina misericórdia, vendeu-se a crueldade como sinal de coragem. O que era mandamento virou slogan; o que era ética virou arma retórica.

No Natal desse cristianismo deformado, Cristo continua figurante. A centralidade é do homem ressentido, armado de certezas morais e vazio de compaixão.

Não é mais o Deus que se faz servo; é o fiel que se faz juiz. A cruz foi substituída pelo palanque, o sermão pelo ataque, a  pelo alinhamento ideológico.

Criou-se, assim, um cristianismo sem Cristo, mas com inimigos muito bem definidos.

Ama-se “a família”, desde que ela caiba num modelo autoritário. Defende-se “a vida”, desde que ela não seja a do pobre, do indígena, do negro, do migrante ou do adversário político.

Fala-se em “valores cristãos” enquanto se justifica a violência verbal, simbólica e, não raro, física.

Natal, nesse contexto, vira o ápice da contradição. Celebra-se o nascimento daquele que disse “bem-aventurados os mansos” com discursos que glorificam a força bruta.

Louva-se o príncipe da paz embalado por uma retórica de guerra cultural.

Brinda-se ao amor enquanto se legitima o ódio — desde que esteja bem justificado, de preferência em nome de Deus.

Essa perversão não é acidental; é funcional. Um cristianismo exigente, que cobra coerência moral, solidariedade concreta e limites ao poder, não serve a projetos autoritários. Por isso, precisa ser domesticado, reduzido a símbolo identitário e esvaziado de conteúdo ético.

Jesus, assim, vira marca, não mensagem.

O resultado é um Natal ruidoso, agressivo e profundamente autocentrado. Muito barulho para abafar a consciência. Muito discurso religioso para esconder a ausência de prática cristã. O presépio permanece, mas agora como peça decorativa de uma  que já não reconhece o carpinteiro de Nazaré.

No fim, a questão não é política — é teológica. Quando o ódio passa a ser virtude e a exclusão vira princípio, já não se trata de cristianismo, mas de idolatria.

Idolatria do homem, do poder e da própria raiva. E isso, convém lembrar, foi precisamente o tipo de culto que Jesus jamais abençoou — nem no Natal, nem em qualquer outro dia.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

A inversão do ônus da prova e os boatos contra o STF

O jornalismo não foi inventado para adivinhar intenções nem para transformar cochichos de bastidor em manchetes respeitáveis.

Quando isso acontece, não estamos diante de informação, mas de narrativa interessada. E narrativa, quando veste a fantasia de notícia, deixa de ser inocente.

- Foi esse tipo de espetáculo de horrores, travestido de jornalismo, que alimentou a desgraça chamada Lava-Jato e pavimentou a chegada do satanás Bolsonaro à presidência. -

Circula por aí — com direito a aspas seletivas e fontes invisíveis — a versão de que Alexandre de Moraes teria conversado com Gabriel Galípolo sobre o Banco Master.

O verbo é revelador:

Teria”.

Não conversou, não há prova de que conversou, não se sabe se conversou.

Mas publica-se. Porque, no Brasil recente, o “teria” passou a funcionar como atalho para o linchamento moral.

Convém lembrar um detalhe que certos colunistas parecem esquecer: ministros do Supremo Tribunal Federal não estão proibidos de conversar com autoridades do Executivo, muito menos quando não há qualquer indício de interferência, pressão ou vantagem indevida.

Conversa, em si, não é crime, não é improbidade, não é infração administrativa.

O Direito ainda exige ato, nexo causal e tipicidade — conceitos básicos do artigo 5º, inciso II, da Constituição: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Onde está a lei violada?
Onde está o ato ilegal?
Onde está o prejuízo à coisa pública?

Silêncio.

A Constituição de 1988, no artigo 102, confere ao STF o papel de guardião da Constituição.

Alexandre de Moraes, goste-se ou não dele, exerceu esse papel quando enfrentou tentativas explícitas de ruptura institucional, investigou crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei nº 14.197/2021) e enquadrou quem achava que a democracia era um detalhe ornamental.

Desde então, virou alvo fixo.

Não é coincidência que qualquer ruído envolvendo Moraes ganhe proporção industrial. Trata-se de estratégia de desgaste, velha conhecida da política brasileira: não se derrota a instituição, então se tenta desmoralizar o indivíduo. O método é conhecido: insinuação primeiro, dúvida depois, suspeição permanente por fim.

E a imprensa? Toda ela entra no jogo.

Não por convicção ideológica, necessariamente, mas por uma mistura de pressa, preguiça investigativa e submissão a fontes que operam nas sombras. Além, é claro de submissão aos donos da notícia.

Todo canal de TV, toda estação de Rádio, todo jornal impresso ou digital, tem Dono.

O jornalismo vira correia de transmissão de interesses que jamais se assumem como tais.

É nesse contexto que surgem especulações ainda mais reveladoras. Coincide — sempre as coincidências — que o bombardeio contra Moraes caminhe junto com rearranjos no campo da direita, tentativas de “desbolsonarização” sem autocrítica e o esforço para viabilizar um nome mais palatável ao mercado.

A pergunta incômoda, que não aparece nos editoriais, é simples:
desgastar o STF serviria como moeda de troca política?

Algo do tipo:
reduz-se a pressão institucional, normaliza-se o discurso golpista, tira-se Moraes do centro do debate — e, em contrapartida, reorganiza-se a direita em torno de um projeto “mais apresentável”, com bênção tácita de setores do mercado financeiro.

- Mais diretamente: nós ajudamos a retirar Alexandre de Moraes do STF, e vocês retiram a candidatura de Flávio Bolsonaro em favorecimento da candidatura de Tarcísio de Freitas.

O próprio Eduardo Bolsonaro disse em alta voz: Tarcísio é um autocrata do Mercado, o ungido pelo sistema que quer acabar com Bolsonaro. -

Não se afirma. Questiona-se. Porque o papel do colunista não é proteger poderosos, mas iluminar zonas cinzentas.

O que se sabe com certeza é isto: não há prova de conversa ilícita, não há indício de interferência, não há fato jurídico relevante. Existe apenas o uso político da suspeita. E suspeita não é categoria jurídica; é ferramenta retórica.

No Estado Democrático de Direito, instituições não se regem por boatos. Regem-se por provas, leis e devido processo legal — artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição. Tudo o que escapa disso é ruído. Ou manipulação.

E manipulação, como a História ensina, costuma cobrar um preço alto de quem brinca com ela achando que controla o roteiro.

No caso do Brasil, este tipo de manipulação custou, repito, a eleição de Jair Bolsonaro, a pior desgraça que houve nesse país desde a chevada doa portugueses.

sábado, 20 de dezembro de 2025

O Cazuza, a AIDS e o meu Tio Lorenzo

Dizia o poeta Agenor, universalmente conhecido como Cazuza, que “o tempo não para”.

Aos meus 64 anos, a minha saúde paga o preço do verbo — não parar. O meu agora significa mais uma noite na emergência hospitalar, aqui em Taubaté.

A Globoplay lançou recentemente a série Cazuza – Além da Música, magnífica coleção de informações e depoimentos sobre a vida, a passagem e a obra deixada pelo eterno filho de Lucinha e João Araújo.

Assim como ele, estudei no Colégio Santo Inácio; 5 anos mais novo, certamente nos cruzamos em algum momento por aqueles corredores imensos, sob o sino de bronze do jardim: “Eu sou um cara cansado de correr na direção oposta, sem pódio de chegada ou beijo de namorada”.

A série, em 4 capítulos, vai além da caricatura do sex, drugs & rock and roll. Mostra uma juventude da Zona Sul carioca dos anos 1980 que escolhia novas formas de viver e amar, rompendo conceitos herdados do antidemocrático 1964.

Cazuza surge como elemento transformador desde a largada. Do Barão Vermelho para a eternidade. Com ele, o dia nasceu feliz e a Beth balançou. 

No Rock in Rio de 1985, a maturidade chegou diante da multidão que aguardava a posse de um presidente civil, após mais de 20 anos de um verde sem esperança.

Na mesma década, apaixonei-me, fui para a Espanha, casei. Em Madrid, capital cultural da Europa, vivi 5 anos e meio mágicos trabalhando numa multinacional, base profissional para toda uma vida.

Para o Cazuza, a AIDS que o acompanhava há três anos causou a sua morte em 7 de julho de 1990, aos 32 anos. No mesmo dia, em Roma, acontecia o primeiro concerto dos Três Tenores. Morreu a carne, eternizou-se o poeta. A notícia correu entre os brasileiros em Madrid. Foi difícil dormir. Voltei aos shows do Circo Voador: “Todo dia a insônia me convence de que o céu faz tudo ficar infinito”. Maldita AIDS.

Regressei ao Brasil no final de 1993, sem vontade - por amor. “E por você eu largo tudo”.

Em 26 de dezembro o meu Tio Lorenzo foi diagnosticado com AIDS. De 95 quilos, restavam 55. Tornei-me o seu único apoio no Rio. Essa guerra era minha.

Ao vasculhar o apartamento – como de uma cena de algum filme de suspense se tratasse - um choque: cartas de um namorado, fotos de homens, camisinhas gays. Aos 32 anos descobri que o meu Tio, de 54, era homossexual.

Dediquei-lhe um ano inteiro; vi vagão do metrô esvaziar-se, por preconceito – estava em pele e osso, uma caveira. 

Faleceu a 4 de dezembro de 1994 nos meus braços. Durante meses temi ter-me contaminado pois tive contato com o seu sangue. Deus não quis. Morreu sem revelar a sua condição sexual. Nunca me importou. Eu o amava. Se havia em mim qualquer traço de homofobia, deixou de existir: “É que eu preciso dizer que eu te amo”.

Esta noite, já madrugada do dia 20 de dezembro, o conta-gotas do soro acompanha minhas palavras. Sinto saudades do amor do meu tio Lorenzo.

Cazuza segue atual: “A tua piscina tá cheia de ratos”. Sempre foi assim: “Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”. Serve para o Congresso Nacional, serve para a ALERJ.

Estou cansado do pedágio do meu corpo, às vezes falta gasolina. Hoje, o portador de HIV tem perspectivas. A ciência dá vida.

Finalizando: “Eu não tenho datas pra comemorar”.

TEXTO DE:
Antonio Gonzalez

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

PL da Dosimetria: rasgar a Constituição e reclamar do STF

O Brasil é mesmo um país admirável. 

Consegue produzir jabuticaba, orçamento secreto e, agora, uma nova modalidade de ficção jurídica: a dosimetria sem juiz.

A Câmara aprovou, o Senado confirmou e o governo — sim, o governo — patrocinou o acordo que resultou no famigerado PL da Dosimetria. Sob a coordenação política de Jacques Wagner, diga-se. Não é detalhe. É agravante.

Comecemos pelo básico, já que o óbvio anda precisando de aula de reforço.

O artigo 59 do Código Penal estabelece que o juiz fixará a pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, considerando culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime.

Isso não é poesia. É técnica jurídica. É individualização da pena — princípio consagrado no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.

Pois bem.

O PL aprovado decide que tudo isso é… exagero.

O magistrado, coitado, estaria “livre demais”. Melhor amarrá-lo. Afinal, juiz pensando é sempre um perigo, não é mesmo? Melhor que ele apenas some frações, ignore o contexto e finja que um assaltante ocasional e um líder de organização criminosa são quase primos distantes.

O texto aprovado faz o milagre inverso ao do Direito Penal moderno: desconstitucionaliza a dosimetria sem dizer que está fazendo isso. Engessa a primeira fase da pena, transforma circunstâncias judiciais em itens decorativos e cria um sistema de pontuação que faria inveja a campeonato de futebol de botão. Só falta o VAR penal.

E tudo isso sob o argumento nobilíssimo do “combate a abusos”. Ora, abusos se combatem com controle, recursos e jurisprudência — não com a mutilação do poder jurisdicional.

O STF já decidiu reiteradas vezes que a dosimetria é matéria de discricionariedade vinculada do juiz, desde que fundamentada (vide HC 118.533, HC 176.473, entre tantos outros). Mas quem liga para a Corte Constitucional quando há acordo político em jogo?

A pergunta incômoda é: quem ganha com isso? O pequeno infrator? Não.

O réu primário? Já tem benefícios legais. 

Quem ganha é o reincidente profissional, o criminoso organizado, o corrupto serial — aquele que sabe navegar como ninguém entre brechas legais, bons advogados e prazos prescricionais. A eles, o Congresso oferece previsibilidade. Ao cidadão comum, oferece discurso.

E aqui entra o componente tragicômico. Parte da esquerda institucional, que passou anos denunciando o “Direito Penal do inimigo”, agora ajuda a criar o Direito Penal do amigo. O amigo certo, claro. O que tem foro, recursos e tempo. O punitivismo era um problema quando atingia os “nossos”. Agora, a leniência virou virtude republicana.

Jacques Wagner sabe disso tudo. Não estamos falando de um neófito.

Wagner conhece a Constituição, conhece o Código Penal, conhece o STF e conhece, sobretudo, o Congresso que tem.

Se articulou o acordo, não foi por ignorância. Foi por cálculo. O problema é quando o cálculo político atropela o cálculo constitucional. E atropela o próprio Governo do qual faz parte da base.

No fim, sobra a ironia maior: vendem o projeto como avanço civilizatório, mas ele afronta o princípio da individualização da pena, esvazia o artigo 59 do Código Penal e convida o Judiciário a atuar como mero carimbador de sentenças pré-fabricadas. Isso não é garantismo. É comodismo legislativo travestido de técnica.

Depois, quando a criminalidade organizada agradecer — em silêncio, claro — ninguém sabe por quê.

No Brasil, a lei continua sendo dura.
Não para todos. Apenas para quem não senta à mesa do acordo.


TEXTO DE:

Tarciso Tertuliano

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O Evangelho Segundo os Canalhas: o uso da Bíblia para justificar política suja

A Bíblia, esse livro milenar que sobreviveu a impérios, cismas, concílios e heresias, finalmente encontrou no Congresso Nacional brasileiro seu mais improvável destino: o de manual jurídico alternativo, usado entre um aparte e outro para justificar ilegalidades com verniz celestial.

O problema não é a . O problema é o golpe hermenêutico.

Deputados e Senadores descobriram que citar versículos no microfone tem um efeito curioso: suspende o constrangimento.

Onde deveria haver Constituição, entra o Levítico; onde se exige legalidade, surge Deuteronômio arrancado do contexto; onde a lei pede provas, apresenta-se uma parábola pervertida.

O Estado é laico, diz a Constituição. Mas, no plenário, ele se converte com facilidade suspeita.

A Bíblia virou álibi retórico.

Serve para justificar ataques ao Supremo, deslegitimar eleições, negar direitos civis, atacar minorias e relativizar crimes — tudo em nome de um Deus que, curiosamente, nunca é citado quando o assunto é justiça social, honestidade administrativa ou amor ao próximo. Esses versículos, ao que parece, ficaram fora do pacote.

E então entra em cena o bolsonarismo, esse fenômeno político-teológico que misturou ressentimento, antipolítica e messianismo barato.

O ex-capitão não apenas foi adotado por setores do meio evangélico: foi ungido, elevado à condição de instrumento divino, apesar de uma biografia que desaconselharia até um cargo de síndico. 

Milagre? Não. Marketing religioso.

Pastores viraram cabos eleitorais; púlpitos se transformaram em palanques; cultos, em comícios.

A Bíblia passou a ser lida como panfleto ideológico, e Jesus, se resolvesse aparecer, provavelmente seria acusado de comunista. Afinal, amar inimigos, defender pobres e condenar hipócritas nunca foi muito popular entre os novos fariseus de Brasília.

O mais grave não é o uso político da religião — isso é velho como o Império Romano. O escândalo é a banalização do sagrado para justificar o profano: ataques à democracia, desprezo pela ciência, flerte com o autoritarismo e, em alguns casos, a tentativa explícita de blindar condutas que a lei penal descreve como sendo crime com clareza suficiente para dispensar exegese bíblica.

Não se trata de perseguir evangélicos — seria intelectualmente desonesto e moralmente baixo. Eu inclusive sou um deles.

Trata-se de denunciar a instrumentalização da por lideranças religiosas e políticas que confundem Deus com projeto de poder e a Bíblia com código penal seletivo.

A Constituição não é um apêndice das Escrituras.

O Congresso não é uma igreja.

E o Estado Democrático de Direito não se submete a revelações particulares, muito menos às que surgem convenientemente em véspera de votação ou investigação.

Se a Bíblia ensina alguma coisa — e ensina muitas — é que falsos profetas existem.

E costumam falar alto, com a Bíblia aberta na mão e a Constituição fechada na consciência.

Na esteira de toda essa confusão, vem a participação das igrejas. Pastores deixaram de lado a pregação do Evangelho e passaram a atuar como cabos eleitorais.

Sempre usando versículos de vingança e punição divina. Porque afinal de contas, o adversário político merece a morte.

Mas quando os crimes e falcatruas de seus ungidos vêm à luz, surgem como de uma cartola mágica justificativas espirituais: perseguições do Inimigo, provas e tentações espirituais.

E caso o crime seja muito grave e a justiça acaba por colocar seu aliado atrás das grades, o discurso de punição é substituído por perdão e amor.

Tudo devidamente homologado com trechos de passagens bíblicas mesmo que um pouquinho deslocadas, pois afinal, os ouvintes nem mesmo lêem mesmo.

Aliás, observando a quantidade de citações bíblicas usadas de maneira indiscriminada, chego a pensar que nem mesmo os pastores andam lendo a tão usada Bíblia.

Isso promete piorar em 2026, ano eleitoral. Pois esses pastores "tomarão o reino de Brasília à força" se for preciso.

E para cristãos como eu, que prefere ouvir o Evangelho no púlpito e não no palanque, a saída vai ser abandonar a igreja, pois nela, o púlpito, o palanque e a hipocrisia se levantarão como a santíssima trindade da política brasileira.


TEXTO DE:

Tarciso Tertuliano

Padre Júlio Lancelotti: a voz que tentam calar

O arcebispo de São Paulo, Dom Odílio Scherer, determinou que o Padre Júlio Lancelotti não pode mais usar redes sociais e não pode mais transmitir missas pela internet.

Isso foi confirmado pelo próprio Padre Júlio. Não é boato, não é fofoca, não, é fato.

Lembrando que Dom Odílio, apoiou veementemente a ração humana criada por João Dória quando era prefeito de São Paulo, tentou distribuir para quem estava em situação de vulnerabilidade.

Uma igreja que vem perdendo fiéis ano após ano decide proibir transmissões que alcançavam pessoas do Brasil inteiro e até de fora do país. É uma escolha pelo silêncio. É a igreja escolhendo se esconder.

O Padre Júlio Lancelotti não é um padre qualquer. Ele dedica a vida à frente da pastoral do povo de rua.

Enquanto muita gente prefere aquele discursinho confortável sobre amor ao próximo, ele está lá na rua todos os dias, distribuindo comida, escuta, acolhimento, um mínimo de dignidade. 

Recentemente, ele inaugurou uma biblioteca no bairro do Belém, em São Paulo, dedicada a pessoas em situação de rua. Três mil livros, rodas de conversa, incentiva a leitura.

Não é só matar fome, é devolver à humanidade aquelas pessoas que a sociedade insiste em tratar como se fossem invisíveis.

E é exatamente isso que faz o padre Júlio incomodar. Ele incomoda porque ele age, porque ele mostra a realidade das ruas. Incomoda porque ele usa as redes sociais para dar voz a quem não tem voz. Incomoda porque a mensagem chega longe demais.

E é aí que entra a censura.

Primeiro você tira a câmera, depois tira a rede social. Ninguém diz que você está proibido de existir, mas se garante que ninguém mais te veja.

Se você incomodar demais, se você der visibilidade demais aos pobres, se você levar o evangelho a sério demais, você vai ser silenciado. É um convite a se conformar, que ninguém ouse ser cristão demais.

Mas eu digo uma coisa para vocês. O padre Júlio vai continuar fazendo o que sempre fez, porque o que move esse homem não é cargo, não é status, não é instituição. É , é compromisso com os esquecidos. E isso nenhuma proibição vai calar.


TEXTO DE:

Thiago Muniz

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Zezé Amargo e a ignorância de um bolsonarista de ocasião

Zezé Di Camargo (o Mirosmar) resolveu falar — e, como costuma acontecer quando certas celebridades resolvem opinar fora do microfone do karaokê, falou demais e pensou de menos.

Ao atacar as filhas de Silvio Santos e o SBT, não produziu crítica; produziu sintoma.

Sintoma de um bolsonarismo que não educa, não refina, não complexifica — ao contrário, embrutece.

É curioso observar como o bolsonarismo funciona como uma espécie de solvente moral: dissolve a capacidade de discordar com civilidade, corrói o senso de limite e transforma qualquer divergência em ofensa pessoal.

Não se debate decisões empresariais, não se analisa linhas editoriais; parte-se direto para o ataque. É a política reduzida ao grito, à grosseria, ao “ou está comigo ou é inimigo”.

Zezé (o Mirosmar) não criticou o SBT como quem exerce cidadania. Criticou como quem foi treinado a reagir por impulso, como se o mundo fosse uma arquibancada e ele estivesse obrigado a xingar o juiz.

O bolsonarismo ensina isso: pensar é coisa de fraco; intolerância é prova de caráter.

O resultado é esse festival de opiniões mal digeridas, ditas com a convicção de quem confunde franqueza com grosseria. Uma prova de imbecilidade completa.

Atacar as filhas de Silvio Santos, herdeiras legítimas de um grupo privado, por decisões que dizem respeito à gestão e à sobrevivência de uma empresa, revela algo ainda mais grave: a incapacidade de aceitar que o mundo não gira em torno da seita ideológica do momento. O bonde passou, Zezé (o Mirosmar), e você nem viu 

O bolsonarista típico não tolera a autonomia alheia. Se não obedece, “traiu”. Se discorda, “se vendeu”. Se pensa diferente, “virou comunista” — esse espantalho eterno usado por quem não sabe nomear a própria ignorância.

O caso é didático. O bolsonarismo não forma cidadãos críticos; forma idiotas profissionais, sempre prontos para atacar pessoas, nunca ideias. E quando artistas aderem a esse modo de ver o mundo, passam a confundir palco com púlpito e opinião com revelação divina.

No fim das contas, Zezé (o Mirosmar) fez um favor ao debate público — ainda que involuntariamente. Sua fala confirma, com a eloquência de um tropeço, que o bolsonarismo não apenas empobrece a política brasileira. Ele empobrece as pessoas. Intelectualmente, moralmente e, sobretudo, humanamente.

E isso, convenhamos, não é desafinação passageira. É método.

Justo ele quer cobrar moral? O cara pobre, que quando ficou rico, humilhou a esposa chamando de feia publicamente diversas vezes? E depois a trocou como se troca de roupa? Que moral tem esse senhor?

O cérebro de Zezé (o Mirosmar), deve ter acabado junto com a voz, que aliás, nunca foi nem longe, boa o suficiente.

Ele é apenas mais um dos milhares de artistas medíocres que passaram pelo Brasil, e não conseguiram realizar nada de concreto pelo país.

E não, não se trata de dizer que artistas são obrigados a ser de esquerda. Trata-se de ter cérebro, seja de esquerda ou de direita.

Mas Zezé, (o Mirosmar) optou por não ser nem um, nem outro. Ele escolheu ser bolsonarista, que virou sinônimo de ignorância.