terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Higher Ground



Higher Ground” foi escrito por Stevie Wonder sobre ter uma segunda chance e aproveitar ao máximo.

O que é mais surpreendente nessa música é que Stevie a gravou três meses antes de quase ser morto a caminho de um concerto beneficente. Stevie ficou em coma por três meses.

No verso “I'm so darn glad he let me try it again / 'Cause my last time on earth I lived a whole world of sin” ( Estou tão feliz que ele me deixou tentar de novo / Porque da última vez na Terra vivi um mundo inteiro de pecado ), Wonder expressa a crença de que a vida oferece oportunidades para aprender e evoluir espiritualmente.

Esse significado ganha ainda mais profundidade ao considerar que, pouco depois do lançamento da música, Stevie Wonder sofreu um grave acidente de carro e entrou em coma.

Durante sua recuperação, a canção foi usada como estímulo, simbolizando literalmente uma nova chance de viver e crescer.

A letra também alterna entre críticas sociais e mensagens de perseverança.

Em “Powers keep on lyin' / While your people keep on dyin'” ( Os poderosos continuam mentindo / Enquanto seu povo continua morrendo ), Wonder denuncia injustiças e a persistência de problemas sociais.

Apesar disso, ele contrapõe essas dificuldades com esperança, especialmente no refrão: “Gonna keep on tryin' / Till I reach the highest ground” ( Vou continuar tentando / Até alcançar o ponto mais alto ).

Assim, a música se transforma em um hino de superação, fé e busca constante por crescimento, tanto individual quanto coletivo, com a espiritualidade servindo como fonte de força.

#steviewonder #music #world #groove #r&b

TEXTO DE:
Thiago Muniz

De Jesus às Havaianas, só não pode matar o Mensageiro

Antes de tudo, um fato: em tempos de mimimi - y “del no me toques”, convém lembrar que meu Pai era de Direita.

Filiou-se nos anos 80 à Ação Popular (hoje Partido Popular) e foi Concejal del Servicio Público y Fomento em As Neves, cidade de Galícia, na Espanha — algo como vereador-secretário.

Divergíamos sempre. Nunca houve grito, nem cara atravessada. Hoje, treze anos após sua morte, está cada vez mais difícil engolir certas coisas — e mais difícil ainda ficar calado.

Em 1973, a Pepsi lançou um jingle nas rádios que virou polêmica: QUEM TEM AMOR PRA DAR (composição de , Rodrix & Guarabira): 

"Hoje existe tanta gente que quer nos modificar, não quer ver nosso cabelo assanhado com jeito.
Nem quer ver a nossa calça desbotada, o que é que há? Se o amigo está nessa ouça bem, não tá com nada!
Só tem amor quem tem amor pra dar, quem tudo quer do mundo sozinho acabará.
Só tem amor quem tem amor pra dar, só o sabor de Pepsi lhe mostra o que é amar"...


Houve quem enxergasse ali uma ameaça ao regime militar. Não havia. Mas a paranoia falou mais alto. Até que saiu o comercial na televisão. Não passava de uma mensagem aos jovens, na onda do movimento hippie. Os hippies pregavam o amor livre, o respeito à natureza, ao pacifismo e a uma vida mais simples – MAKE LOVE, NOT MONEY.

Pouco depois, veio o clássico da Bamerindus: “o tempo passa, o tempo voa e a poupança Bamerindus continua numa boa” — e passou mesmo. Só a ignorância cricri continua, permaneceu intacta.

Em 2025, repetimos o filme. Um surto coletivo se volta contra a campanha de fim de ano das Havaianas, estrelada pela premiadíssima Fernanda Torres. Um ataque neurótico, beirando o delírio.

A pergunta é simples: se a protagonista fosse a Regina Duarte, a Cássia Kiss, a Antônia Fontenelle ou a Luiza Tomé, com o mesmo texto, haveria a mesma gritaria? Ou o problema é o CPF de quem calça a sandália?

Outra: os mesmos que gritam contra a propaganda recusariam uma transfusão de sangue “vermelho” ou preferem uma overdose de anilina?

Cancelariam Milton Nascimento por causa de Canção da América – e o amigo guardado no lado esquerdo do peito?

Ou César Menotti & Fabiano por Do Lado Esquerdo?

No fundo, o que mudou nesses 52 anos entre a Pepsi e as Havaianas é pouco: a burrice virou hereditária.

E que me perdoem alguns amigos da esquerda: o povo tem direito de comprar o que quiser. Não dá mais para culpar o capitalismo por tudo. Ou vamos ressuscitar Georgi Dimitrov e o Congresso de 1935?

Já que falamos de extremismo, é urgente dar um basta ao deputado Paulo Bilynskyj — um misógino que agora resolveu posar de teórico separatista. Ao chamar o Maranhão de “bosta”, revela ignorância crassa sobre a cultura e o potencial econômico do estado. E, ao atacar a Bahia, transforma ACM em Fidel Castro, a velha ARENA em Sierra Maestra e a UDN em guerrilha revolucionária. Patético.

E não esqueçamos do nebuloso caso do Banco Master, que traz consigo a verborragia contaminada da Malu Gaspar. Como cidadão brasileiro desejo que se apure até o último centavo. Como torcedor do Fluminense me preocupa. Há boatos, supostamente com o BTG no meio, e silêncio demais.

Por fim, o Natal.

O Papa Leão XIV disse algo óbvio: negar ajuda aos pobres é negar Deus.

Já o Cardeal Dom Odilo mandou suspender as transmissões do Padre Júlio Lancellotti. Enquanto isso, quem aparece na TV são  os Padres das fanfarras, Marcelo Rossi e Fábio Melo — cujas práticas cristãs não chegam a 5% da obra social de Júlio.

Que igreja é essa? Dois pesos, duas medidas.

Um mês sem Paulo Andel me deixou mais ácido, mais atento. Especialmente em dezembro, mês do nascimento de Jesus — que, convenhamos, usava sandálias, as Havaianas da época. 

Não esqueçam:

Jesus se escreve com J.

J de Padre Júlio Lancellotti.

FELIZ 2026!!!


TEXTO DE:
Antonio Gonzalez

segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

2025: quando o bolsonarismo encontrou o Código Penal

Não foi um ano qualquer. 2025 foi o ano em que a política brasileira resolveu sair do teatro de absurdos e encarar a realidade — aquela que vem com lei, consequência e despacho judicial.

A prisão de Jair Bolsonaro e de parte relevante de seus asseclas não caiu do céu nem foi “vingança do sistema”, como repetem seus fiéis órfãos políticos.

Foi o resultado previsível de uma trajetória construída sobre ataques às instituições, flertes explícitos com o golpe e a ideia delirante de que vontade pessoal se sobrepõe à Constituição

Descobriu-se, tardiamente, que democracia não é playground ideológico.

Enquanto o bolsonarismo se especializava em vitimização, o governo Lula fez o que governos são eleitos para fazer: governar.

A isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil não é revolução socialista, como bradam os apocalípticos de sempre. É apenas uma correção mínima num país que tributa demais o salário e de menos o patrimônio. O Brasil, por um instante raro, decidiu aliviar quem trabalha.

O Congresso, contudo, preferiu manter sua imagem pública em baixa. Ganhou — e fez por merecer — o rótulo de “inimigo do povo”.

Não por radicalismo retórico, mas por prática cotidiana: chantagem orçamentária, sabotagem de políticas públicas e um apetite insaciável por emendas como se o Estado fosse um caixa eletrônico particular. Representatividade virou detalhe.

Nesse ambiente, o comportamento de Hugo Motta ajudou pouco e atrapalhou muito. Imaturo, errático e frequentemente mais preocupado com disputa de poder do que com responsabilidade institucional, confundiu liderança política com birra. O resultado foi um Congresso mais ruidoso do que produtivo e crises fabricadas para consumo interno.

No plano internacional, o Brasil deu um recado claro ao derrotar a tentativa de aplicação da Lei Magnitsky contra ministros do STF.

A ofensiva, patrocinada por setores da extrema direita global, era menos sobre direitos humanos e mais sobre vingança política. Ao resistir, o país afirmou algo básico: divergência judicial não autoriza intervenção estrangeira nem sanção sob encomenda ideológica.

As cassações de mandatos de deputados bolsonaristas completaram o cenário. Não houve perseguição. Houve consequência. Mandato não é salvo-conduto para atacar a democracia por dentro, nem licença para conspirar contra o próprio regime que garante o cargo.

No fim das contas, 2025 não foi um ano de harmonia — foi um ano de ajuste. 

Doloroso para quem apostou no caos como projeto político. Pedagógico para quem ainda duvidava que instituições, apesar de lentas, funcionam.

A realidade venceu. E, ao contrário das fake news, ela não precisa gritar para se impor.

Mas convém não se iludir: a luta está longe de acabar.

Nos últimos meses, parte da imprensa passou a mirar o ministro Alexandre de Moraes não por súbito zelo garantista, mas como peça de uma barganha política mal disfarçada.

O ataque seletivo ao STF aparece como moeda de troca num acordo tácito com a família Bolsonaro: reduzir a pressão judicial em troca da retirada de Flávio Bolsonaro da disputa, abrindo caminho para um projeto mais “palatável” do bolsonarizmo,encarnado por Tarcísio de Freitas.

É a velha política travestida de pragmatismo editorial. O enredo muda, os personagens também, mas a tentativa de acomodar o golpismo dentro do sistema persiste.

A democracia venceu batalhas importantes em 2025 — mas a guerra contra o oportunismo, o cinismo e a chantagem institucional segue em curso.

Que venha 2026...

quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Natal: festa do que?

O Natal, no Brasil, já não é uma celebração cristã. É um evento antropológico.

Não se cultua o Cristo; cultua-se o EU.

Jesus aparece apenas como álibi retórico, um selo religioso para legitimar a festa do excesso, da autopermissão e da hipocrisia social.

A cena é conhecida: mesas monumentais, álcool em abundância, música alta — não raro com letras que fariam corar qualquer catequista — e discursos inflamados sobre “o verdadeiro sentido do Natal”.

O verdadeiro sentido, ao que parece, é não se conter. A virtude teológica do domínio próprio foi substituída pela virtude pagã do “mereço”.

Cristo nasce pobre, discreto, fora do centro do poder.

O Natal moderno nasce barulhento, autocentrado e profundamente vaidoso. 

Não é o culto ao Deus que se faz homem; é o culto ao homem que se faz deus por uma noite.

O cristianismo do presépio foi trocado pelo cristianismo do espelho.

Fala-se em Jesus, mas pratica-se outra religião: a da satisfação pessoal. O mandamento não é “amar ao próximo”, mas “não me julgue”.

A ética do Evangelho, que exige renúncia, virou um detalhe inconveniente. Afinal, quem quer um Cristo que confronte hábitos, denuncie excessos e exponha incoerências?

O curioso — ou trágico — é que essa hipocrisia não é percebida como tal. O discurso religioso serve como anestésico moral.

Brinda-se “ao menino Jesus” enquanto se ignora tudo o que ele ensinou depois de crescer. O nascimento é celebrado; a mensagem, arquivada. O presépio é montado; o Evangelho, silenciado.

Trata-se de um cristianismo sem cruz, sem exigência e sem transformação. Um cristianismo de ocasião, domesticado, que não incomoda consciências nem desafia estruturas.

Jesus, nesse contexto, não é Senhor — é figurante. Serve para enfeitar, não para governar.

Talvez por isso o Natal precise ser tão barulhento. O silêncio, como sempre, é perigoso. No silêncio, alguém poderia lembrar que aquele que nasceu numa manjedoura jamais confundiu fé com festa, espiritualidade com excesso ou amor com autopromoção.

No fim, o problema não é a ceia, nem a música, nem a celebração em si.

O problema é chamar de cristão um culto que tem o homem no centro e Cristo na moldura. Isso não é Natal. É apenas mais uma reunião em homenagem a nós mesmos — com Jesus como convidado que ninguém escuta.


Ao culto do eu soma-se outro fenômeno ainda mais grave: a instrumentalização da  por um projeto político que transformou o cristianismo em plataforma de ressentimento.

Não se trata mais apenas de esquecer Jesus — trata-se de usá-lo contra tudo o que ele ensinou.

bolsonarismo não criou essa hipocrisia religiosa, mas deu a ela método, linguagem e agressividade. Onde o Evangelho propõe amor ao próximo, introduziu-se o ódio como virtude cívica. Onde Jesus ensina misericórdia, vendeu-se a crueldade como sinal de coragem. O que era mandamento virou slogan; o que era ética virou arma retórica.

No Natal desse cristianismo deformado, Cristo continua figurante. A centralidade é do homem ressentido, armado de certezas morais e vazio de compaixão.

Não é mais o Deus que se faz servo; é o fiel que se faz juiz. A cruz foi substituída pelo palanque, o sermão pelo ataque, a  pelo alinhamento ideológico.

Criou-se, assim, um cristianismo sem Cristo, mas com inimigos muito bem definidos.

Ama-se “a família”, desde que ela caiba num modelo autoritário. Defende-se “a vida”, desde que ela não seja a do pobre, do indígena, do negro, do migrante ou do adversário político.

Fala-se em “valores cristãos” enquanto se justifica a violência verbal, simbólica e, não raro, física.

Natal, nesse contexto, vira o ápice da contradição. Celebra-se o nascimento daquele que disse “bem-aventurados os mansos” com discursos que glorificam a força bruta.

Louva-se o príncipe da paz embalado por uma retórica de guerra cultural.

Brinda-se ao amor enquanto se legitima o ódio — desde que esteja bem justificado, de preferência em nome de Deus.

Essa perversão não é acidental; é funcional. Um cristianismo exigente, que cobra coerência moral, solidariedade concreta e limites ao poder, não serve a projetos autoritários. Por isso, precisa ser domesticado, reduzido a símbolo identitário e esvaziado de conteúdo ético.

Jesus, assim, vira marca, não mensagem.

O resultado é um Natal ruidoso, agressivo e profundamente autocentrado. Muito barulho para abafar a consciência. Muito discurso religioso para esconder a ausência de prática cristã. O presépio permanece, mas agora como peça decorativa de uma  que já não reconhece o carpinteiro de Nazaré.

No fim, a questão não é política — é teológica. Quando o ódio passa a ser virtude e a exclusão vira princípio, já não se trata de cristianismo, mas de idolatria.

Idolatria do homem, do poder e da própria raiva. E isso, convém lembrar, foi precisamente o tipo de culto que Jesus jamais abençoou — nem no Natal, nem em qualquer outro dia.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

A inversão do ônus da prova e os boatos contra o STF

O jornalismo não foi inventado para adivinhar intenções nem para transformar cochichos de bastidor em manchetes respeitáveis.

Quando isso acontece, não estamos diante de informação, mas de narrativa interessada. E narrativa, quando veste a fantasia de notícia, deixa de ser inocente.

- Foi esse tipo de espetáculo de horrores, travestido de jornalismo, que alimentou a desgraça chamada Lava-Jato e pavimentou a chegada do satanás Bolsonaro à presidência. -

Circula por aí — com direito a aspas seletivas e fontes invisíveis — a versão de que Alexandre de Moraes teria conversado com Gabriel Galípolo sobre o Banco Master.

O verbo é revelador:

Teria”.

Não conversou, não há prova de que conversou, não se sabe se conversou.

Mas publica-se. Porque, no Brasil recente, o “teria” passou a funcionar como atalho para o linchamento moral.

Convém lembrar um detalhe que certos colunistas parecem esquecer: ministros do Supremo Tribunal Federal não estão proibidos de conversar com autoridades do Executivo, muito menos quando não há qualquer indício de interferência, pressão ou vantagem indevida.

Conversa, em si, não é crime, não é improbidade, não é infração administrativa.

O Direito ainda exige ato, nexo causal e tipicidade — conceitos básicos do artigo 5º, inciso II, da Constituição: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Onde está a lei violada?
Onde está o ato ilegal?
Onde está o prejuízo à coisa pública?

Silêncio.

A Constituição de 1988, no artigo 102, confere ao STF o papel de guardião da Constituição.

Alexandre de Moraes, goste-se ou não dele, exerceu esse papel quando enfrentou tentativas explícitas de ruptura institucional, investigou crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei nº 14.197/2021) e enquadrou quem achava que a democracia era um detalhe ornamental.

Desde então, virou alvo fixo.

Não é coincidência que qualquer ruído envolvendo Moraes ganhe proporção industrial. Trata-se de estratégia de desgaste, velha conhecida da política brasileira: não se derrota a instituição, então se tenta desmoralizar o indivíduo. O método é conhecido: insinuação primeiro, dúvida depois, suspeição permanente por fim.

E a imprensa? Toda ela entra no jogo.

Não por convicção ideológica, necessariamente, mas por uma mistura de pressa, preguiça investigativa e submissão a fontes que operam nas sombras. Além, é claro de submissão aos donos da notícia.

Todo canal de TV, toda estação de Rádio, todo jornal impresso ou digital, tem Dono.

O jornalismo vira correia de transmissão de interesses que jamais se assumem como tais.

É nesse contexto que surgem especulações ainda mais reveladoras. Coincide — sempre as coincidências — que o bombardeio contra Moraes caminhe junto com rearranjos no campo da direita, tentativas de “desbolsonarização” sem autocrítica e o esforço para viabilizar um nome mais palatável ao mercado.

A pergunta incômoda, que não aparece nos editoriais, é simples:
desgastar o STF serviria como moeda de troca política?

Algo do tipo:
reduz-se a pressão institucional, normaliza-se o discurso golpista, tira-se Moraes do centro do debate — e, em contrapartida, reorganiza-se a direita em torno de um projeto “mais apresentável”, com bênção tácita de setores do mercado financeiro.

- Mais diretamente: nós ajudamos a retirar Alexandre de Moraes do STF, e vocês retiram a candidatura de Flávio Bolsonaro em favorecimento da candidatura de Tarcísio de Freitas.

O próprio Eduardo Bolsonaro disse em alta voz: Tarcísio é um autocrata do Mercado, o ungido pelo sistema que quer acabar com Bolsonaro. -

Não se afirma. Questiona-se. Porque o papel do colunista não é proteger poderosos, mas iluminar zonas cinzentas.

O que se sabe com certeza é isto: não há prova de conversa ilícita, não há indício de interferência, não há fato jurídico relevante. Existe apenas o uso político da suspeita. E suspeita não é categoria jurídica; é ferramenta retórica.

No Estado Democrático de Direito, instituições não se regem por boatos. Regem-se por provas, leis e devido processo legal — artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição. Tudo o que escapa disso é ruído. Ou manipulação.

E manipulação, como a História ensina, costuma cobrar um preço alto de quem brinca com ela achando que controla o roteiro.

No caso do Brasil, este tipo de manipulação custou, repito, a eleição de Jair Bolsonaro, a pior desgraça que houve nesse país desde a chevada doa portugueses.

sábado, 20 de dezembro de 2025

O Cazuza, a AIDS e o meu Tio Lorenzo

Dizia o poeta Agenor, universalmente conhecido como Cazuza, que “o tempo não para”.

Aos meus 64 anos, a minha saúde paga o preço do verbo — não parar. O meu agora significa mais uma noite na emergência hospitalar, aqui em Taubaté.

A Globoplay lançou recentemente a série Cazuza – Além da Música, magnífica coleção de informações e depoimentos sobre a vida, a passagem e a obra deixada pelo eterno filho de Lucinha e João Araújo.

Assim como ele, estudei no Colégio Santo Inácio; 5 anos mais novo, certamente nos cruzamos em algum momento por aqueles corredores imensos, sob o sino de bronze do jardim: “Eu sou um cara cansado de correr na direção oposta, sem pódio de chegada ou beijo de namorada”.

A série, em 4 capítulos, vai além da caricatura do sex, drugs & rock and roll. Mostra uma juventude da Zona Sul carioca dos anos 1980 que escolhia novas formas de viver e amar, rompendo conceitos herdados do antidemocrático 1964.

Cazuza surge como elemento transformador desde a largada. Do Barão Vermelho para a eternidade. Com ele, o dia nasceu feliz e a Beth balançou. 

No Rock in Rio de 1985, a maturidade chegou diante da multidão que aguardava a posse de um presidente civil, após mais de 20 anos de um verde sem esperança.

Na mesma década, apaixonei-me, fui para a Espanha, casei. Em Madrid, capital cultural da Europa, vivi 5 anos e meio mágicos trabalhando numa multinacional, base profissional para toda uma vida.

Para o Cazuza, a AIDS que o acompanhava há três anos causou a sua morte em 7 de julho de 1990, aos 32 anos. No mesmo dia, em Roma, acontecia o primeiro concerto dos Três Tenores. Morreu a carne, eternizou-se o poeta. A notícia correu entre os brasileiros em Madrid. Foi difícil dormir. Voltei aos shows do Circo Voador: “Todo dia a insônia me convence de que o céu faz tudo ficar infinito”. Maldita AIDS.

Regressei ao Brasil no final de 1993, sem vontade - por amor. “E por você eu largo tudo”.

Em 26 de dezembro o meu Tio Lorenzo foi diagnosticado com AIDS. De 95 quilos, restavam 55. Tornei-me o seu único apoio no Rio. Essa guerra era minha.

Ao vasculhar o apartamento – como de uma cena de algum filme de suspense se tratasse - um choque: cartas de um namorado, fotos de homens, camisinhas gays. Aos 32 anos descobri que o meu Tio, de 54, era homossexual.

Dediquei-lhe um ano inteiro; vi vagão do metrô esvaziar-se, por preconceito – estava em pele e osso, uma caveira. 

Faleceu a 4 de dezembro de 1994 nos meus braços. Durante meses temi ter-me contaminado pois tive contato com o seu sangue. Deus não quis. Morreu sem revelar a sua condição sexual. Nunca me importou. Eu o amava. Se havia em mim qualquer traço de homofobia, deixou de existir: “É que eu preciso dizer que eu te amo”.

Esta noite, já madrugada do dia 20 de dezembro, o conta-gotas do soro acompanha minhas palavras. Sinto saudades do amor do meu tio Lorenzo.

Cazuza segue atual: “A tua piscina tá cheia de ratos”. Sempre foi assim: “Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”. Serve para o Congresso Nacional, serve para a ALERJ.

Estou cansado do pedágio do meu corpo, às vezes falta gasolina. Hoje, o portador de HIV tem perspectivas. A ciência dá vida.

Finalizando: “Eu não tenho datas pra comemorar”.

TEXTO DE:
Antonio Gonzalez

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

PL da Dosimetria: rasgar a Constituição e reclamar do STF

O Brasil é mesmo um país admirável. 

Consegue produzir jabuticaba, orçamento secreto e, agora, uma nova modalidade de ficção jurídica: a dosimetria sem juiz.

A Câmara aprovou, o Senado confirmou e o governo — sim, o governo — patrocinou o acordo que resultou no famigerado PL da Dosimetria. Sob a coordenação política de Jacques Wagner, diga-se. Não é detalhe. É agravante.

Comecemos pelo básico, já que o óbvio anda precisando de aula de reforço.

O artigo 59 do Código Penal estabelece que o juiz fixará a pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, considerando culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime.

Isso não é poesia. É técnica jurídica. É individualização da pena — princípio consagrado no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.

Pois bem.

O PL aprovado decide que tudo isso é… exagero.

O magistrado, coitado, estaria “livre demais”. Melhor amarrá-lo. Afinal, juiz pensando é sempre um perigo, não é mesmo? Melhor que ele apenas some frações, ignore o contexto e finja que um assaltante ocasional e um líder de organização criminosa são quase primos distantes.

O texto aprovado faz o milagre inverso ao do Direito Penal moderno: desconstitucionaliza a dosimetria sem dizer que está fazendo isso. Engessa a primeira fase da pena, transforma circunstâncias judiciais em itens decorativos e cria um sistema de pontuação que faria inveja a campeonato de futebol de botão. Só falta o VAR penal.

E tudo isso sob o argumento nobilíssimo do “combate a abusos”. Ora, abusos se combatem com controle, recursos e jurisprudência — não com a mutilação do poder jurisdicional.

O STF já decidiu reiteradas vezes que a dosimetria é matéria de discricionariedade vinculada do juiz, desde que fundamentada (vide HC 118.533, HC 176.473, entre tantos outros). Mas quem liga para a Corte Constitucional quando há acordo político em jogo?

A pergunta incômoda é: quem ganha com isso? O pequeno infrator? Não.

O réu primário? Já tem benefícios legais. 

Quem ganha é o reincidente profissional, o criminoso organizado, o corrupto serial — aquele que sabe navegar como ninguém entre brechas legais, bons advogados e prazos prescricionais. A eles, o Congresso oferece previsibilidade. Ao cidadão comum, oferece discurso.

E aqui entra o componente tragicômico. Parte da esquerda institucional, que passou anos denunciando o “Direito Penal do inimigo”, agora ajuda a criar o Direito Penal do amigo. O amigo certo, claro. O que tem foro, recursos e tempo. O punitivismo era um problema quando atingia os “nossos”. Agora, a leniência virou virtude republicana.

Jacques Wagner sabe disso tudo. Não estamos falando de um neófito.

Wagner conhece a Constituição, conhece o Código Penal, conhece o STF e conhece, sobretudo, o Congresso que tem.

Se articulou o acordo, não foi por ignorância. Foi por cálculo. O problema é quando o cálculo político atropela o cálculo constitucional. E atropela o próprio Governo do qual faz parte da base.

No fim, sobra a ironia maior: vendem o projeto como avanço civilizatório, mas ele afronta o princípio da individualização da pena, esvazia o artigo 59 do Código Penal e convida o Judiciário a atuar como mero carimbador de sentenças pré-fabricadas. Isso não é garantismo. É comodismo legislativo travestido de técnica.

Depois, quando a criminalidade organizada agradecer — em silêncio, claro — ninguém sabe por quê.

No Brasil, a lei continua sendo dura.
Não para todos. Apenas para quem não senta à mesa do acordo.


TEXTO DE:

Tarciso Tertuliano