domingo, 7 de dezembro de 2025

Blindar-se contra o golpismo: não pode?

Em 2016, quando o Supremo Tribunal Federal admitiu prisão após condenação em segunda instância — com alvo certo, voto de Gilmar Mendes e ao arrepio da Constituição de 1988 —, explodiram em palmas o Jardim Botânico, o solar dos Civita e a alameda Barão de Limeira, e deu para ouvir também o jornaleiro Bernard Gregoire soprando sua corneta, montado em seu cavalo, anunciando a boa-nova na capa do Estadão.

O Brasil vivia, na época, a farra das “medidas excepcionais” fabricadas na 13ª de Curitiba e nos gabinetes da task force mancomunada com o DoJ; “medidas excepcionais” para “tempos excepcionais” engendrados nos jardins, solares e alamedas da mídia corporativa.

Agora, quando Gilmar Mendes despacha para proteger o STF da tentativa do produto daquela época, o fascismo à brasileira, de repetir no Brasil o que a internacional fascista já fez na Hungria e na Polônia, ou seja, pôr a Justiça prostrada no âmbito do mais excepcional dos tempos desde a Segunda Guerra; agora, dizíamos, as redações explodem, muito republicanas, em fúria jurisprudencial.

O Estadão corneta: “decisão teratológica”. Na Folha: “Gilmar Mendes põe ministros entre autoridades acima da lei”. No jornal O Globo, jornalista e notório professor isentão da USP cravam, respectivamente, que “blindagem por canetada de Gilmar é golpe na democracia” e “Gilmar Mendes implode sistema de freios e contrapesos”, como se na Hungria e na Polônia restasse breque ou contramedida a quem tem como projeto reduzir a democracia a pó.

Na Globo News, comentarista de política reconhece que o Brasil vive um golpe continuado, que isto não é de hoje e que o próximo golpe dentro do golpe já está anunciado, é este e pode ser o de misericórdia: um strike em ministros do STF não sancionados por Trump, começando por Alexandre de Moraes, derrubando Flavio Dino, quem sabe Edson Fachin e por que não um último pino, o próprio Gilmar Mendes.

Mesmo assim, o comentarista comenta que, se criticou a PEC da Blindagem do Legislativo, agora tem de criticar também o que chama de “PEC da Blindagem do Judiciário”.

Que apenas uma das duas seja coisa de bandidagem, quem se importa?

Que diferença faz que o que revelou nesta sexta-feira, 5, no Uol, o repórter Fábio Serapião?

Isto: o homem que tem a caneta para fazer andar impeachments de ministros do STF recebeu canetas emagrecedoras não liberadas pela Anvisa das mãos de “Beto Louco”, empresário acusado pela Polícia Federal de ligação com o PCC e hoje foragido da Justiça. Quem se arrisca, quem bota a cara para esclarecer que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, se a bacia do isentismo, do doisladismo, do encimadomurismo está sempre ali, à mão, para lavar as mãos?

Blindar-se contra o golpismo: não pode? 

Segundo a mídia corporativa, não. O que pode é o fascismo tomar o Senado da República via emendas Pix, deep fakes de IA, via chacinas, nas eleições de 2026, para depois pôr o Supremo de joelhos.

O problema do Brasil”, como se sabe, é legião, mas um dos demônios que andam por aqui em grupos do quinto dos infernos é a pusilanimidade que grassa na mídia corporativa, em regra. 

Ou, como disse Luis Nassif no GGN a respeito da “interminável discussão sobre a decisão do ministro Gilmar Mendes”, uma “multidão de semi-juristas espalhados pela mídia” que têm dificuldades com o “mundo real”.

Quando Gilmar Mendes despacha contra os direitos dos povos indígenas, por exemplo, nenhum jornal sai gritando “implosão por canetada da democracia!”.

Quando Gilmar opera como promoter de surubadas juscorporativas no exterior, orgias de conflitos de interesses entre o Judiciário, o capital e o Centrão, nenhuma emissora dá à coisa o nome que ela merece, e sim “Gilmarpalooza”.

Mas quando o decano do Supremo atua, como disse Moisés Mendes no Brasil 247, em “legítima defesa de um patrimônio institucional ameaçado”, ameaçado por golpistas, aí, senhoras, senhores, não pode, não. Aí é “golpe”…


Artigo publicado no Come Ananás sob o título "Blindar-se contra o golpismo: não pode?".


TEXTO DE:

Hugo Souza

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A democracia agradece.

sábado, 6 de dezembro de 2025

O DESincrível Huck e os indígenas

A frase de Luciano Huck pedindo que os indígenas limpassem a cultura de vocês aí ao retirar celulares e roupas modernas não é apenas um deslize verbal.

É a manifestação de uma lógica que permanece viva no imaginário brasileiro e que transforma povos originários em personagens fabricados para consumo público.

Essa fala revela a continuidade de um olhar colonial que enxerga culturas indígenas como peças de museu e não como realidades vivas, dinâmicas e em constante transformação.

Quando um apresentador multimilionário se sente autorizado a determinar como um povo deve se apresentar diante das câmeras, ele repete a antiga hierarquia que sempre colocou a branquitude no centro da definição do que é legítimo.

A orientação para que celulares fossem escondidos não busca autenticidade. Ela busca reforçar a fantasia de um indígena congelado no tempo.

Essa exigência ignora que toda cultura muda e incorpora elementos novos ao longo das gerações. Ao negar essa mudança, a fala de Huck atua como um tipo de patrulha identitária colonial que tenta controlar a autoimagem de comunidades historicamente silenciadas.

A frase limpem a cultura não limpa nada. 

Ela revela um gesto de sujeira simbólica que distorce a relação entre quem filma e quem é filmado. 

Huck não queria mostrar a cultura indígena como ela é. Queria uma versão estetizada e exotizada que se encaixa no imaginário confortável da televisão. É a tentativa de ajustar vidas reais ao roteiro que a branquitude espera ver. 

Essa prática esvazia sujeitos e os transforma em cenário. A violência simbólica está justamente nessa transformação. A autonomia indígena é substituída pela estética que o entretenimento considera vendável.

A assimetria de poder fica evidente. Um comunicador com alcance nacional molda identidades alheias de acordo com o interesse da indústria televisiva. 

Enquanto isso, os mesmos povos que o país insiste em representar como figuras folclóricas continuam lutando por terra, respeito e direitos básicos.

O Brasil deseja indígenas para a fotografia, mas não para a política. Quer adorno, mas não quer escutar suas demandas. Quer rituais, mas não quer reconhecer demarcações.

O problema não está apenas na frase de Huck. Está no que ela escancara sobre a sociedade brasileira.

Ainda se espera que indígenas performem uma pureza inventada enquanto a população que consome entretenimento se recusa a enxergar a complexidade desses povos.

A fala revela a preferência nacional pela fantasia em vez da realidade.

Indígenas que usam tecnologia ou que transitam pelo mundo contemporâneo são frequentemente tratados como se tivessem perdido sua identidade, o que é uma completa distorção sociológica.

No fim, a gravação apenas confirma algo que o país insiste em não admitir. Não é a cultura indígena que precisa ser limpa.

É a nossa dificuldade histórica de aceitar que ela é plural, contemporânea, potente e resistente apesar de séculos de apagamento.

TEXTO DE:
Beta Bastos

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Kim Kataguiri ensina Marx

Quando um político decide “ensinarMarx, a história, que é sábia, cruza os braços para assistir à metamorfose do absurdo.

Não foi diferente quando o então deputado Kim Kataguiri resolveu subir ao quadro-negro das ideias e oferecer ao público uma aula de marxismo.

O problema não estava na ousadia de falar de teoria, sempre louvável quando acompanhada de estudo, mas na displicência de tratar o pensamento alheio como massa de modelar retórica. 

Entre tropeços conceituais, confundiu comunismo com socialismo, como se ambos fossem sinônimos intercambiáveis numa equação ideológica apressada. Já seria didático, se não fosse desastroso.

Mas a parte que fez a cronologia gargalhar foi outra: a afirmação solene de que Karl Marx teria vivido para ver a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, e ali, testemunha ocular das trincheiras, teria “admitido seus erros”.

Não houve ali apenas um equívoco teórico; houve um choque frontal com o calendário.

Marx morreu em 1883, no século XIX, quando a Europa ainda discutia a máquina a vapor e o capitalismo industrial consolidava seus alicerces.

A guerra que devastou o mundo em 1914 aconteceu mais de três décadas depois de Marx já estar no silêncio definitivo da história. Erros podem pertencer a intérpretes, jamais a mortos que não atravessaram o tempo onde foram citados.

A correção alheia chegou rápida, como carta urgente enviada pela própria evidência histórica.

Mas a correção parou na soleira, porque o vídeo, em vez de ser revisto com humildade, foi deletado.

Um gesto tardio para quem já havia discursado à nação com a convicção de um mestre que nunca abriu o livro.

Deletar não rebobina viralização.

A internet, ao contrário da História, não tem borracha: tem testemunhas. O efeito da fala já tinha se multiplicado em memes, cópias, comentários e gargalhadas, fazendo com que o erro não fosse esquecido,  fosse celebrado como chacota pública.

O episódio revelou um paradoxo moderno: vive-se na era do excesso de informação, mas há quem decida falar antes de consultar a mais básica das enciclopédias.

Não foi Marx quem assistiu a Primeira Guerra; foi o país quem assistiu a um deputado guerrear com datas e sair derrotado pelo óbvio.

A piada nacional não nasceu do marxismo, nasceu da pressa em parecer culto sem ser estudioso. E nisso o erro não foi político; foi pedagógico: ensinou a todos que opinião não substitui formação e retórica não salva do ridículo quando o fato é atropelado.

A viralização, nesse caso, funcionou como tribunal popular involuntário: não puniu com censura, puniu com riso.

Não destruiu a carreira, mas a colocou, por um instante eterno da web, no panteão involuntário dos “comentaristas anacrônicos”, onde a História responde com sarcasmo, e o povo, munido de bom senso básico, apenas completa com gargalhadas.

Porque no Brasil, a massa não precisa de diploma para perceber quando alguém tenta reescrever o mundo sem sequer saber em qual século ele começou.



domingo, 30 de novembro de 2025

Até Breve, Paulo Andel

por Antonio Gonzalez

Fito Cabrales, do FITO Y FITIPALDIS, canta em Antes que Cuente Diez:

Puedo escribir y no disimular, es la ventaja de irse haciendo viejo

O tempo nos escapa, dissolve o sentido horário, apaga a noção dos anos vividos.

Vivemos numa era em que a imprensa PONTOCOM celebra separações — MC Poze do Rodo e Vivi, Ivete Sangalo e Daniel, Gilmar Mendes e Guiomar — enquanto a cultura agoniza.

O que isso me acrescenta? Nada. 

Não me culpem por não me importar com tempestades na Venezuela, cancelamentos de influencers, ou o fracasso cíclico da Rússia contra a Croácia. A vida envelhece rápido, e hoje perco mais do que ganho.

Joaquin Sabina disse em 19 Días y 500 Noches:

Y el portazo sonó como un signo de interrogación

No meu caso, foi um telefonema. 

Do outro lado da linha, o GENTLEMAN, Raul Sussekind: “Mestre, infelizmente...”. 

O silêncio rasgou. As lágrimas vieram. Eu sabia do grave estado do Paulo Andel, mas cada dia de internação ainda sustentava uma esperança frágil. 

Pensei: “Puta que pariu, perdi meu irmão!”.

Conheci Andel no segundo semestre de 2014, após um desentendimento com o então colaborador Caldeira – hoje desterrado.

Fervi.

Então recebi no Facebook uma carta do Paulo, um texto apaixonante pedindo que eu não partisse pra porrada.

 Aquelas palavras me conquistaram. A partir dali nasceu algo maior que amizade: um irmão de .

Sabia da minha trajetória nas arquibancadas dos anos 70 e 80 como poucos. Dizia que eu era seu ídolo, o que me deixava ruborizado. Defendia minha história e minha ética.

Divergíamos vez ou outra — “porra, você com esse costume de crucificar fulano” — por vezes acabava reconhecendo, mesmo que anos depois.

De cultura ímpar, transitava por literatura, música, futebol de botão e Fluminense como quem joga no escrete mundial.

Mas, como escreveu Nando Reis em Relicário:

O mundo está ao contrário

e ninguém reparou

Numa sociedade repleta de filhos da puta, falta espaço para alguém com tua dignidade. E, dessa vez, o “no balanço das horas tudo pode mudar”, da Banda Metrô, não funcionou.

Teu legado ultrapassa os livros publicados. Vive nos meus amigos Couceiro, Edgard, Raul, Cláudia Barros, Silvio, Marcelo Diniz, Jocemar, Thiago Muniz, Tarciso, na galera do Panorama Tricolor que você me apresentou, e no nosso querido e inigualável Conde Don Francisco da Zanzibar.

Este texto é um até breve. Minha saúde também pede arrego. Sinto. Pressinto.


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Três coisas antes do fim:

a) Você merecia um presente histórico na sua partida: 6 a 0 no São Paulo;

b) O Fluminense lembrou de você, fez uma nota — você me conhece, ponto para Mário Bittencourt; contra o Bahia, tua foto estará no Maracanã;

c) Na dedicatória do "Fla-Flu: o jogo que nunca termina" você escreveu: “Ao meu irmão, ídolo, parceiro, escudo das arquibancadas”. Isso me emociona todos os dias.


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Continuarei te representando: serei teu fiel escudo das arquibancadas.

A foto do Silvio Almeida nos define como irmãos.

Te amo. Até breve.

Antonio Gonzalez

sábado, 29 de novembro de 2025

Dez motivos para não perdoar Bolsonaro

(Com o devido enquadramento jurídico, para evitar recaídas civis)

De vez em quando, algum espírito iluminado — talvez tomado por um surto de romantismo constitucional — pergunta:
Mas não está na hora de perdoar Bolsonaro?

A resposta, meus caros, exige o rigor mínimo da análise jurídica, ainda que temperada com ironia: não, não está.

E não por ressentimento, mas por um motivo simples: há condutas que, mesmo que um dia venham a ser julgadas — e algumas já estão — não cabem no campo místico do perdão barato.
Vamos aos fatos — ou, se preferir, ao hall of infame de infrações éticas, morais e, em certos casos, legais.

1. A omissão dolosa na pandemia

Art. 13 do Código Penal: quem podia evitar o resultado e não evitou, responde por ele.
No caso, a opção foi não apenas deixar de evitar: foi sabotar.
Perdoar? Seria premiar o “E daí?” como tese jurídica.

2. A guerra santa contra a ciência

O art. 37 da Constituição exige eficiência na administração pública.
Substituir ciência por cloroquina é o oposto disso — é ineficiência qualificada.
Não há perdão possível para quem tenta resolver uma pandemia com achismo de botequim.

Fora o crime de charlatanismo previsto no Código Penal (art. 283).

3. As mortes transformadas em planilha fria

O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) virou figurante enquanto vidas eram tratadas como métricas.
Pode-se absolver alguém que reduziu pessoas a estatísticas?
Não sem violentar a Constituição — novamente.

4. Racismo, homofobia e misoginia como método

Racismo é crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII).
Homofobia foi equiparada ao mesmo tratamento pelo STF.
E misoginia? Entra no pacote da discriminação.
Chamar tudo isso de “brincadeira” é insulto — e péssima tese de defesa.

5. Glorificação da violência e do torturador

O Brasil tem tratados internacionais que proíbem a tortura.
E lá estava o ex-presidente fazendo elegia aos torturadores.
Perdoar seria repudiar o sistema jurídico brasileiro só para agradar a nostalgias autoritárias.

6. O flerte permanente com o autoritarismo

Incitar golpe é violar o art. 5º, XLIV — crime inafiançável.
E ainda fez isso com a competência de quem tenta invadir o próprio Facebook achando que é senha de Wi-Fi.
Difícil perdoar inclusive pelo ridículo.

7. A fabricação industrial de ódio político

O discurso de ódio, quando praticado por agente público, lesa não apenas pessoas — lesa o Estado Democrático de Direito.
E alguém quer perdoar quem fez do ódio uma política de governo?
Se quiser, peça também a revogação da Lei de Improbidade, para combinar.

8. A fé transformada em cabo eleitoral

E esse item me aflige diretamente, pois sou cristão evangélico há anos.

A Constituição separa Estado e religião (art. 19, I).
Bolsonaro misturou púlpito com comício como quem mistura café com açúcar, com a cumplicidade de péssimos pastores.
Perdoar seria legitimar a quebra do Estado laico com recibo.

9. O sequestro da ideia de nação

Confundir governo com país viola o próprio espírito republicano (art. 1º, caput).
Para Bolsonaro, quem discordava não era adversário — era inimigo.
E inimigo, na lógica dele, não é cidadão.
E cidadão sem cidadania é um problema jurídico dos bons.

10. A ausência olímpica de arrependimento

O Direito Penal até admite arrependimento eficaz.
Mas para isso é preciso haver arrependimento.
No caso, há apenas recaídas discursivas, tentativas de golpe e passeios estratégicos ao redor do sistema judicial.
Perdoar quem não se arrepende é transformar perdão em erro material.

Conclusão jurídica e moral

Perdão não é uma abstração mística.
É uma categoria ética que pressupõe consciência da culpa.
E, até o momento, Bolsonaro não demonstrou consciência, culpa ou sequer constrangimento.

Perdoá-lo exigiria reformar o Código Penal, relativizar a Constituição, ignorar tratados internacionais e suspender a lógica.
E ainda assim, o resultado seria duvidoso.

Portanto, se algum dia você sentir a tentação de perdoar Jair Messias Bolsonaro, lembre-se:
nem a lei permite tanto zelo com quem tratou o país como laboratório de devastação.


SEM ANISTIA

De Eunice Paiva a Michelle Bolsonaro: Quando a história ensina com duas visitas a diferença entre Ditadura e Democracia

Por João Guató - Comparando a dor silenciosa da ditadura com o chororô fotogênico permitido pela democracia.
Há ensinamentos que a história entrega com sutileza; outros, com estardalhaço.

E há aqueles que ela nos esfrega na cara, como quem diz: “Meu filho, não force. É só olhar.” O curioso é que, mesmo assim, tem gente que fecha os olhos com a mesma convicção de quem acredita que a Terra é plana, mas só no hemisfério de Brasília.

Pensemos em Eunice Paiva.

Ela atravessou o país, o tempo e o silêncio atrás de um marido que a ditadura arrancou de sua casa como quem puxa uma tomada da parede: brusco, impessoal, sem explicação — e, sobretudo, sem devolução. Eunice buscou um rosto, um corpo, uma pista… encontrou uma ausência. A ditadura tem dessas delicadezas: não devolve nem o aperto de mão.

Corta para Michelle Bolsonaro. Boné branco, expressão calibrada, choro técnico digno de novela das nove. O marido também foi preso — eis a coincidência — mas aí começa o descompasso histórico.

Na democracia, ela foi visitá-lo no dia seguinte, com direito a escolta, câmeras, registro oficial e talvez até um “força, meu amor” estrategicamente sussurrado para o efeito sonoro.

Enquanto Eunice buscou por décadas sem achar, Michelle buscou por vinte e quatro horas e encontrou. O que separa essas duas jornadas não é só o tempo. É o regime. É a luz. É a simples diferença entre um Estado que engole pessoas e outro que apenas as guarda por um tempo — com recibo, protocolo e horário de visita.

Mas tente explicar isso aos devotos do Bolsonaro. Eles falam da ditadura como quem fala de um amor de infância que nunca existiu: “Ah, mas naquela época era tudo organizado.

Era sim: organizado para desaparecer gente. Organizado para que Eunice Paiva jamais tivesse sequer o direito de se despedir.

É por isso que a imagem dessas duas mulheres, colocadas lado a lado, vale por mil discursos. De um lado, a dor silenciosa imposta por um regime que proibia até a última pergunta. Do outro, o chororô fotogênico permitido por uma democracia que, veja só, permite até que falem mal dela.

E para completar esse desfile de contradições, ainda aparecem — com a convicção típica de quem estudou História numa figurinha de WhatsApp — os militantes da saudade autoritária gritando pela volta da ditadura militar.

Esses mesmos que, ironicamente, só podem gritar isso porque… a democracia deixa.

Aí, quando o STF aplica a lei, investigando quem tentou brincar de golpe como se fosse festa junina fora de época, eles têm a pachorra de berrar:
Ditadura do STF!

Ditadura onde, meu filho?
Naquela mesma instituição onde ministro vota, diverge, discorda, debate e publica decisão para todo mundo ler?

Ditadura é o que levou Eunice Paiva a procurar o marido por décadas sem nunca receber uma resposta — nem viva, nem morta.

Se isso aqui fosse ditadura de verdade, o máximo que vocês teriam hoje seria o silêncio… e talvez uma caminhonete preta na porta, sem placa, sem live, sem hashtag.

Mas não: vocês têm celular, internet, rede social, advogado, habeas corpus e ainda a ousadia de fazer cosplay de perseguido político com camisa da seleção e milkshake na mão.

É por isso que eu digo:
sonham com a ditadura como quem sonha com um parque de diversões — porque nunca tiveram de pagar o ingresso da tragédia.

E como a história é teimosa, segue ensinando:
ditadura é quando até o choro é proibido;
democracia é quando até quem delira tem direito a voz.

E mesmo assim… eles reclamam.
Aí já não é só falta de noção —
é alucinação cívica em grau avançado.

E no fim das contas, a pergunta que fica é simples, quase infantil:
Se democracia e ditadura são “a mesma coisa”, por que Eunice perdeu o marido para sempre, enquanto Michelle o encontrou na manhã seguinte?

Mas aí, meus caros, já entramos no terreno arenoso da lógica — esse solo que tantos evitam pisar para não deslizar nas próprias certezas.

E assim a história, paciente e sarcástica, continua ensinando:
há quem não aprenda porque não sabe; e há quem não aprenda porque não quer.

TEXTO DE:
João Guató

Paulo Andel por Jocemar

Virou estrela...

Conheci Paulo, há mais ou menos 30 anos, nos campeonatos de botão dos quais participávamos, no corredor subterrâneo do Edifício Edson Passos, na Av. Rio Branco, organizados pelos amigos da Livraria Berinjela e que aconteciam um domingo por mês. 

Fazíamos o clássico Flu × Flu, como costumávamos dizer. Ao contrário da maioria dos jogos das outras mesas e de outros amigos, o nosso era tranquilo, quase um amistoso e praticamente não precisava de juiz.

Ele me venceu na maioria das vezes. Jogava muito com seu time de botões simples, assim como ele. Espalhava os pequenos jogadores pela mesa, sem muita arrumação (sem papagaiada...). Jogava muito. Uma precisão absurda nos disparos. Às vezes eu levava meu filho, na época com 7, 8 anos. Por conta disso, mais tarde, meu filho foi personagem de uma crônica sua, no livro "Cenas do Centro do Rio I".

Ficamos amigos desde então. Fomos a shows juntos. Tomamos muitos cafezinhos pelo Centro do Rio, garimpamos CDs juntos, compartilhamos muitas histórias e cenas que virariam crônicas, minhas e principalmente dele. Ele chegou a publicar uma crônica minha no Blog "Otras palabras" e sempre me incentivou a escrever. Era generoso em sua crítica. 

Fomos a muitos jogos do Flu, no Maraca. Vibramos muito e sofremos demais nos anos e jogos que antecederam o milagre de 2009 - jogos que gerariam as crônicas de seu livro "Do Inferno ao Céu". Fiquei tão entusiasmado com o livro, que fiz um cordel, de 180 versos, em 30 estrofes, com o mesmo título em homenagem. Ficamos muito amigos.

Em 2017, Paulo me propôs abrirmos um Sebo juntos. Conversamos sobre o tema por quase dois anos e em fevereiro de 2019, juntamente e com o auxílio luxuoso do querido amigo Silvio Almeida, apresentado a mim por ele, abrimos o Sebo X, no espaço disponibilizado pelo Silvio, e onde funcionava seu estúdio fotográfico.

Sebo e Estúdio se espremiam e assim começou essa página da nossa história e convivência. Livros, CDs, LPs, ensaios de fotos, pockets shows, palestras, lives do Panorama (com a bandeira sobre a mesa). Rolou de tudo. Até meu filho, aquele da crônica, agora um homem, tocou lá, numa série de shows solos.
 
Pois é... foi muita coisa que aconteceu, muita gargalhada, trabalho, alegrias, tensões, vitórias, derrotas, cansaço, resenhas, planos, conquistas, grandes amizades... Amigos que saíram, outros que chegaram...

Hoje, com a notícia de sua partida no áudio do querido e incansável Raul, no Sebo ficou um imenso vazio. Sentei, respirei, lembrei dele, levantei e meio incrédulo, sem olhar para suas coisas espalhadas pelos cantos da sala, fechei o Sebo e saí.

Parei na portaria e falei com os porteiros, que gostavam muito dele. Fui até o seu prédio e comuniquei o ocorrido ao porteiro Maurício, também tricolor, de quem Paulo gostava muito também.

Maurício ficou com os olhos vermelhos ao receber a notícia. No trajeto do Sebo X até o prédio onde nosso já saudoso amigo morava, falei com minha mulher, com Silvio, com o tambbém querido Marcelo Diniz, com dois amigos da loja de CDs vizinha do sebo. A voz estava embargada. Na verdade eu queria mesmo era andar, pegar um ar de frente no rosto.

Agora, é tocar em frente, pois afinal a vida tem que seguir, mas não haverão mais os pastéis com laranjada da "Chic", no Saara (Paulão comia sempre dois), o garimpo de fim de tarde no Olivar, na entrada do Metrô da Carioca, o cachorro de linguiça no Gaúcho, no Largo do Lume, ou o joelho (italiano) da Húngara, da Estação do Metrô Carioca. A próxima segunda vai ser barra pesada...

Ontem, resolvi passar na UPA onde estava internado, antes dele ser transferido para o hospital onde iria dar seu último suspiro hoje. Ali, nos despedimos sem palavras.

No dia 28/11, mesma data em que, há 49 anos atrás perdi meu avô, meu amigo se foi, meio assim como seu pai, que partiu no dia da grande vitória do Flu sobre o São Paulo na Libertadores de 2008. A vitória de ontem foi pra ele, esse tricolor apaixonado, maior escritor publicado e dedicado à história do nosso amado Fluminense.

É isso...
Andel agora virou estrela, que brilhará pra sempre lá no céu. 

Descanse em paz, meu amigo!

TEXTO DE:
Jocemar