Lingua Preta
Não me faça perguntas, e eu não te direi mentiras.
terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Higher Ground
De Jesus às Havaianas, só não pode matar o Mensageiro
segunda-feira, 29 de dezembro de 2025
2025: quando o bolsonarismo encontrou o Código Penal
Não foi um ano qualquer. 2025 foi o ano em que a política brasileira resolveu sair do teatro de absurdos e encarar a realidade — aquela que vem com lei, consequência e despacho judicial.
A prisão de Jair Bolsonaro e de parte relevante de seus asseclas não caiu do céu nem foi “vingança do sistema”, como repetem seus fiéis órfãos políticos.
Foi o resultado previsível de uma trajetória construída sobre ataques às instituições, flertes explícitos com o golpe e a ideia delirante de que vontade pessoal se sobrepõe à Constituição.
Descobriu-se, tardiamente, que democracia não é playground ideológico.
Enquanto o bolsonarismo se especializava em vitimização, o governo Lula fez o que governos são eleitos para fazer: governar.
A isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil não é revolução socialista, como bradam os apocalípticos de sempre. É apenas uma correção mínima num país que tributa demais o salário e de menos o patrimônio. O Brasil, por um instante raro, decidiu aliviar quem trabalha.
O Congresso, contudo, preferiu manter sua imagem pública em baixa. Ganhou — e fez por merecer — o rótulo de “inimigo do povo”.
Não por radicalismo retórico, mas por prática cotidiana: chantagem orçamentária, sabotagem de políticas públicas e um apetite insaciável por emendas como se o Estado fosse um caixa eletrônico particular. Representatividade virou detalhe.
Nesse ambiente, o comportamento de Hugo Motta ajudou pouco e atrapalhou muito. Imaturo, errático e frequentemente mais preocupado com disputa de poder do que com responsabilidade institucional, confundiu liderança política com birra. O resultado foi um Congresso mais ruidoso do que produtivo e crises fabricadas para consumo interno.
No plano internacional, o Brasil deu um recado claro ao derrotar a tentativa de aplicação da Lei Magnitsky contra ministros do STF.
A ofensiva, patrocinada por setores da extrema direita global, era menos sobre direitos humanos e mais sobre vingança política. Ao resistir, o país afirmou algo básico: divergência judicial não autoriza intervenção estrangeira nem sanção sob encomenda ideológica.
As cassações de mandatos de deputados bolsonaristas completaram o cenário. Não houve perseguição. Houve consequência. Mandato não é salvo-conduto para atacar a democracia por dentro, nem licença para conspirar contra o próprio regime que garante o cargo.
No fim das contas, 2025 não foi um ano de harmonia — foi um ano de ajuste.
Doloroso para quem apostou no caos como projeto político. Pedagógico para quem ainda duvidava que instituições, apesar de lentas, funcionam.
A realidade venceu. E, ao contrário das fake news, ela não precisa gritar para se impor.
Mas convém não se iludir: a luta está longe de acabar.
Nos últimos meses, parte da imprensa passou a mirar o ministro Alexandre de Moraes não por súbito zelo garantista, mas como peça de uma barganha política mal disfarçada.
O ataque seletivo ao STF aparece como moeda de troca num acordo tácito com a família Bolsonaro: reduzir a pressão judicial em troca da retirada de Flávio Bolsonaro da disputa, abrindo caminho para um projeto mais “palatável” do bolsonarizmo,encarnado por Tarcísio de Freitas.
É a velha política travestida de pragmatismo editorial. O enredo muda, os personagens também, mas a tentativa de acomodar o golpismo dentro do sistema persiste.
A democracia venceu batalhas importantes em 2025 — mas a guerra contra o oportunismo, o cinismo e a chantagem institucional segue em curso.
Que venha 2026...
quinta-feira, 25 de dezembro de 2025
Natal: festa do que?
O Natal, no Brasil, já não é uma celebração cristã. É um evento antropológico.
Não se cultua o Cristo; cultua-se o EU.
Jesus aparece apenas como álibi retórico, um selo religioso para legitimar a festa do excesso, da autopermissão e da hipocrisia social.
A cena é conhecida: mesas monumentais, álcool em abundância, música alta — não raro com letras que fariam corar qualquer catequista — e discursos inflamados sobre “o verdadeiro sentido do Natal”.
O verdadeiro sentido, ao que parece, é não se conter. A virtude teológica do domínio próprio foi substituída pela virtude pagã do “mereço”.
Cristo nasce pobre, discreto, fora do centro do poder.
O Natal moderno nasce barulhento, autocentrado e profundamente vaidoso.
Não é o culto ao Deus que se faz homem; é o culto ao homem que se faz deus por uma noite.
O cristianismo do presépio foi trocado pelo cristianismo do espelho.
Fala-se em Jesus, mas pratica-se outra religião: a da satisfação pessoal. O mandamento não é “amar ao próximo”, mas “não me julgue”.
A ética do Evangelho, que exige renúncia, virou um detalhe inconveniente. Afinal, quem quer um Cristo que confronte hábitos, denuncie excessos e exponha incoerências?
O curioso — ou trágico — é que essa hipocrisia não é percebida como tal. O discurso religioso serve como anestésico moral.
Brinda-se “ao menino Jesus” enquanto se ignora tudo o que ele ensinou depois de crescer. O nascimento é celebrado; a mensagem, arquivada. O presépio é montado; o Evangelho, silenciado.
Trata-se de um cristianismo sem cruz, sem exigência e sem transformação. Um cristianismo de ocasião, domesticado, que não incomoda consciências nem desafia estruturas.
Jesus, nesse contexto, não é Senhor — é figurante. Serve para enfeitar, não para governar.
Talvez por isso o Natal precise ser tão barulhento. O silêncio, como sempre, é perigoso. No silêncio, alguém poderia lembrar que aquele que nasceu numa manjedoura jamais confundiu fé com festa, espiritualidade com excesso ou amor com autopromoção.
No fim, o problema não é a ceia, nem a música, nem a celebração em si.
O problema é chamar de cristão um culto que tem o homem no centro e Cristo na moldura. Isso não é Natal. É apenas mais uma reunião em homenagem a nós mesmos — com Jesus como convidado que ninguém escuta.
Ao culto do eu soma-se outro fenômeno ainda mais grave: a instrumentalização da Fé por um projeto político que transformou o cristianismo em plataforma de ressentimento.
Não se trata mais apenas de esquecer Jesus — trata-se de usá-lo contra tudo o que ele ensinou.
O bolsonarismo não criou essa hipocrisia religiosa, mas deu a ela método, linguagem e agressividade. Onde o Evangelho propõe amor ao próximo, introduziu-se o ódio como virtude cívica. Onde Jesus ensina misericórdia, vendeu-se a crueldade como sinal de coragem. O que era mandamento virou slogan; o que era ética virou arma retórica.
No Natal desse cristianismo deformado, Cristo continua figurante. A centralidade é do homem ressentido, armado de certezas morais e vazio de compaixão.
Não é mais o Deus que se faz servo; é o fiel que se faz juiz. A cruz foi substituída pelo palanque, o sermão pelo ataque, a Fé pelo alinhamento ideológico.
Criou-se, assim, um cristianismo sem Cristo, mas com inimigos muito bem definidos.
Ama-se “a família”, desde que ela caiba num modelo autoritário. Defende-se “a vida”, desde que ela não seja a do pobre, do indígena, do negro, do migrante ou do adversário político.
Fala-se em “valores cristãos” enquanto se justifica a violência verbal, simbólica e, não raro, física.
O Natal, nesse contexto, vira o ápice da contradição. Celebra-se o nascimento daquele que disse “bem-aventurados os mansos” com discursos que glorificam a força bruta.
Louva-se o príncipe da paz embalado por uma retórica de guerra cultural.
Brinda-se ao amor enquanto se legitima o ódio — desde que esteja bem justificado, de preferência em nome de Deus.
Essa perversão não é acidental; é funcional. Um cristianismo exigente, que cobra coerência moral, solidariedade concreta e limites ao poder, não serve a projetos autoritários. Por isso, precisa ser domesticado, reduzido a símbolo identitário e esvaziado de conteúdo ético.
Jesus, assim, vira marca, não mensagem.
O resultado é um Natal ruidoso, agressivo e profundamente autocentrado. Muito barulho para abafar a consciência. Muito discurso religioso para esconder a ausência de prática cristã. O presépio permanece, mas agora como peça decorativa de uma Fé que já não reconhece o carpinteiro de Nazaré.
No fim, a questão não é política — é teológica. Quando o ódio passa a ser virtude e a exclusão vira princípio, já não se trata de cristianismo, mas de idolatria.
Idolatria do homem, do poder e da própria raiva. E isso, convém lembrar, foi precisamente o tipo de culto que Jesus jamais abençoou — nem no Natal, nem em qualquer outro dia.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2025
A inversão do ônus da prova e os boatos contra o STF
O jornalismo não foi inventado para adivinhar intenções nem para transformar cochichos de bastidor em manchetes respeitáveis.
Quando isso acontece, não estamos diante de informação, mas de narrativa interessada. E narrativa, quando veste a fantasia de notícia, deixa de ser inocente.
- Foi esse tipo de espetáculo de horrores, travestido de jornalismo, que alimentou a desgraça chamada Lava-Jato e pavimentou a chegada do satanás Bolsonaro à presidência. -
Circula por aí — com direito a aspas seletivas e fontes invisíveis — a versão de que Alexandre de Moraes teria conversado com Gabriel Galípolo sobre o Banco Master.
O verbo é revelador:
“Teria”.
Não conversou, não há prova de que conversou, não se sabe se conversou.
Mas publica-se. Porque, no Brasil recente, o “teria” passou a funcionar como atalho para o linchamento moral.
Convém lembrar um detalhe que certos colunistas parecem esquecer: ministros do Supremo Tribunal Federal não estão proibidos de conversar com autoridades do Executivo, muito menos quando não há qualquer indício de interferência, pressão ou vantagem indevida.
Conversa, em si, não é crime, não é improbidade, não é infração administrativa.
O Direito ainda exige ato, nexo causal e tipicidade — conceitos básicos do artigo 5º, inciso II, da Constituição: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Onde está a lei violada?
Onde está o ato ilegal?
Onde está o prejuízo à coisa pública?
Silêncio.
A Constituição de 1988, no artigo 102, confere ao STF o papel de guardião da Constituição.
Alexandre de Moraes, goste-se ou não dele, exerceu esse papel quando enfrentou tentativas explícitas de ruptura institucional, investigou crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei nº 14.197/2021) e enquadrou quem achava que a democracia era um detalhe ornamental.
Desde então, virou alvo fixo.
Não é coincidência que qualquer ruído envolvendo Moraes ganhe proporção industrial. Trata-se de estratégia de desgaste, velha conhecida da política brasileira: não se derrota a instituição, então se tenta desmoralizar o indivíduo. O método é conhecido: insinuação primeiro, dúvida depois, suspeição permanente por fim.
E a imprensa? Toda ela entra no jogo.
Não por convicção ideológica, necessariamente, mas por uma mistura de pressa, preguiça investigativa e submissão a fontes que operam nas sombras. Além, é claro de submissão aos donos da notícia.
Todo canal de TV, toda estação de Rádio, todo jornal impresso ou digital, tem Dono.
O jornalismo vira correia de transmissão de interesses que jamais se assumem como tais.
É nesse contexto que surgem especulações ainda mais reveladoras. Coincide — sempre as coincidências — que o bombardeio contra Moraes caminhe junto com rearranjos no campo da direita, tentativas de “desbolsonarização” sem autocrítica e o esforço para viabilizar um nome mais palatável ao mercado.
A pergunta incômoda, que não aparece nos editoriais, é simples:
desgastar o STF serviria como moeda de troca política?
Algo do tipo:
reduz-se a pressão institucional, normaliza-se o discurso golpista, tira-se Moraes do centro do debate — e, em contrapartida, reorganiza-se a direita em torno de um projeto “mais apresentável”, com bênção tácita de setores do mercado financeiro.
- Mais diretamente: nós ajudamos a retirar Alexandre de Moraes do STF, e vocês retiram a candidatura de Flávio Bolsonaro em favorecimento da candidatura de Tarcísio de Freitas.
O próprio Eduardo Bolsonaro disse em alta voz: Tarcísio é um autocrata do Mercado, o ungido pelo sistema que quer acabar com Bolsonaro. -
Não se afirma. Questiona-se. Porque o papel do colunista não é proteger poderosos, mas iluminar zonas cinzentas.
O que se sabe com certeza é isto: não há prova de conversa ilícita, não há indício de interferência, não há fato jurídico relevante. Existe apenas o uso político da suspeita. E suspeita não é categoria jurídica; é ferramenta retórica.
No Estado Democrático de Direito, instituições não se regem por boatos. Regem-se por provas, leis e devido processo legal — artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição. Tudo o que escapa disso é ruído. Ou manipulação.
E manipulação, como a História ensina, costuma cobrar um preço alto de quem brinca com ela achando que controla o roteiro.
No caso do Brasil, este tipo de manipulação custou, repito, a eleição de Jair Bolsonaro, a pior desgraça que houve nesse país desde a chevada doa portugueses.
sábado, 20 de dezembro de 2025
O Cazuza, a AIDS e o meu Tio Lorenzo
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
PL da Dosimetria: rasgar a Constituição e reclamar do STF
O Brasil é mesmo um país admirável.
Consegue produzir jabuticaba, orçamento secreto e, agora, uma nova modalidade de ficção jurídica: a dosimetria sem juiz.
A Câmara aprovou, o Senado confirmou e o governo — sim, o governo — patrocinou o acordo que resultou no famigerado PL da Dosimetria. Sob a coordenação política de Jacques Wagner, diga-se. Não é detalhe. É agravante.
Comecemos pelo básico, já que o óbvio anda precisando de aula de reforço.
O artigo 59 do Código Penal estabelece que o juiz fixará a pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, considerando culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime.
Isso não é poesia. É técnica jurídica. É individualização da pena — princípio consagrado no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.
Pois bem.
O PL aprovado decide que tudo isso é… exagero.
O magistrado, coitado, estaria “livre demais”. Melhor amarrá-lo. Afinal, juiz pensando é sempre um perigo, não é mesmo? Melhor que ele apenas some frações, ignore o contexto e finja que um assaltante ocasional e um líder de organização criminosa são quase primos distantes.
O texto aprovado faz o milagre inverso ao do Direito Penal moderno: desconstitucionaliza a dosimetria sem dizer que está fazendo isso. Engessa a primeira fase da pena, transforma circunstâncias judiciais em itens decorativos e cria um sistema de pontuação que faria inveja a campeonato de futebol de botão. Só falta o VAR penal.
E tudo isso sob o argumento nobilíssimo do “combate a abusos”. Ora, abusos se combatem com controle, recursos e jurisprudência — não com a mutilação do poder jurisdicional.
O STF já decidiu reiteradas vezes que a dosimetria é matéria de discricionariedade vinculada do juiz, desde que fundamentada (vide HC 118.533, HC 176.473, entre tantos outros). Mas quem liga para a Corte Constitucional quando há acordo político em jogo?
A pergunta incômoda é: quem ganha com isso? O pequeno infrator? Não.
O réu primário? Já tem benefícios legais.
Quem ganha é o reincidente profissional, o criminoso organizado, o corrupto serial — aquele que sabe navegar como ninguém entre brechas legais, bons advogados e prazos prescricionais. A eles, o Congresso oferece previsibilidade. Ao cidadão comum, oferece discurso.
E aqui entra o componente tragicômico. Parte da esquerda institucional, que passou anos denunciando o “Direito Penal do inimigo”, agora ajuda a criar o Direito Penal do amigo. O amigo certo, claro. O que tem foro, recursos e tempo. O punitivismo era um problema quando atingia os “nossos”. Agora, a leniência virou virtude republicana.
Jacques Wagner sabe disso tudo. Não estamos falando de um neófito.
Wagner conhece a Constituição, conhece o Código Penal, conhece o STF e conhece, sobretudo, o Congresso que tem.
Se articulou o acordo, não foi por ignorância. Foi por cálculo. O problema é quando o cálculo político atropela o cálculo constitucional. E atropela o próprio Governo do qual faz parte da base.
No fim, sobra a ironia maior: vendem o projeto como avanço civilizatório, mas ele afronta o princípio da individualização da pena, esvazia o artigo 59 do Código Penal e convida o Judiciário a atuar como mero carimbador de sentenças pré-fabricadas. Isso não é garantismo. É comodismo legislativo travestido de técnica.
Depois, quando a criminalidade organizada agradecer — em silêncio, claro — ninguém sabe por quê.
No Brasil, a lei continua sendo dura.
Não para todos. Apenas para quem não senta à mesa do acordo.
TEXTO DE:
Tarciso Tertuliano
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