sábado, 15 de novembro de 2025

Dica de livro: “O lodo das ruas"

“O lodo das ruas"
Editora Sétimo Selo, RJ, 2022
Uma editora corajosa resolveu fazer o que nenhuma das grandes teve peito: reeditar a saga de Octavio de Faria, “Tragédia burguesa”, composta de 15 romances publicados entre 1937 e 1979, ou seja durante 42 anos.

Uma vida, diremos com nossos botões. “O lodo das ruas”, que acaba de sair, foi publicado em 1942 é o terceiro e aqui para nós um dos melhores. Sim, eu li todos, pois preparo sem data de finalizar um estudo sobre sua obra de ficção.

Toda família tem um momento em que começa a apodrecer” disse um dia Nelson Rodrigues, frase que cai como uma luva em nosso livro em questão, escrito várias décadas antes.

Na verdade, tirando o sarcasmo, o livro que mais se parece com “O lodo...” na minha opinião é “O casamento” o romance rodrigueano publicado (e proibido) em 1968. Dois autores católicos conservadores, mas cuja obra ultrapassa suas ideologias ultrapassadas e contém os ataques mais virulentos contra a burguesia de toda literatura brasileira. Ler para crer.

Tratamos aqui da família Paiva e sua implosão. Pai autoritário, mãe adúltera, tia carola. Cinco filhos. Três rapazes e duas moças. Teremos um desinteressado da esposa, um apaixonado pela cunhada, outro bancado por um pretendente gay, uma filha grávida solteira, outra noiva de um primo de passado pouco recomendável, dois bastardos, um suicídio. Um padre idealista que tenta ajudar e só atrapalha. Etc e tal. Cenas da vida carioca classe média na década de 1930 na Zona Sul. Os Paiva derretem como um sorvete no sol tropical.

Trata-se, portanto, de um melodrama quase dramalhão, mas não um melodrama social ou romântico como a maioria dos melodramas, mas sobre a moral católica e seu confronto com a vida real.

Com seu estilo intimista seco e implacável (que apressadinhos definem como “falta de estilo” ou “mau estilo” ou “chatíssimo”) Octavio de Faria sabe do que está falando, pois fala de sua própria classe social.

É um absurdo que o único autor importante a retratar os conflitos da classe dominante da antiga capital da república durante o Estado Novo tenha sido alijado dos nossos estudos de literatura por pruridos ideológicos ou pela simples preguiça em conhecer sua extensa obra. Fica faltando um pedaço. Nem tudo é mandacaru, acarajé ou chimarrão.

Em tempo: embora encadeados na mesma saga com personagens que transitam de um livro para outro, cada volume pode ser lido separadamente sem muito problema. Atenção. Se mesmo um anarco-agnóstico, um antípoda como eu viu todas essas qualidades, é necessário reavaliar. Tudo tem de ser revisto sempre e para sempre, periodicamente. Chegou a hora do Octavio de Faria.

O livro se encontra nos saites e livrarias para quem se interessar.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O Dia em que o STF Salvou o Recreio — e a República (de novo)

É preciso dizer com todas as letras: somos um país extraordinário.

Não extraordinário no sentido de admirável, mas no sentido de que nada aqui é ordinário, normal, previsível, trivial. É tudo… extra.

tanto que o Supremo Tribunal Federal — que deveria gastar seus neurônios com temas como Estado de Direito, equilíbrio entre Poderes, liberdade democrática, essas firulas — precisou, vejam só, julgar o recreio dos professores!

Sim, o recreio. Aquele intervalo entre uma aula e outra, onde alunos e professores tentam comer alguma coisa, tomar um café e ir o banheiro, antes que sino volte a tocar.

O Brasil não é para iniciantes, amadores, e ultimamente nem para profissionais.

Pois bem: algumas instituições de ensino superior, sempre muito ciosas da “gestão eficiente”, descobriram uma maneira inovadora de enxugar custos — o tipo de solução que só aparece quando gente muito criativa se reúne numa sala com ar-condicionado e café em cápsula: descontar dos professores o tempo do recreio.

Ora, claro! Por que não?

Se a lógica for essa, podemos também descontar do médico o tempo entre uma cirurgia e outra, do juiz o intervalo entre um julgamento e o próximo, do jornalista os cinco minutos em que respira fundo antes de escrever sobre uma pauta estapafúrdia como essa que estou escrevendo (e agravo: de graça).

Do jeito que vai, não tardará o momento em que algum gênio administrativo reivindique que o professor seja descontado por ficar calado durante a prova.

Mas eis que o STF, esse ente metafísico que precisa entrar em cena sempre que a realidade brasileira insiste em ser uma comédia pastelão, decidiu o óbvio: recreio faz parte da jornada de trabalho.

O professor não está de férias entre uma aula e outra. Não está em Mônaco jogando roleta, ou no Maracanã gritando Mengo!, e muito menos diante de um quartel pedindo golpes. Em geral, está vigiando corredor, atendendo aluno, preparando próxima atividade, impedindo que dois adolescentes resolvam uma divergência filosófica à base de cadeirada (né, Datena?).

O recreio, no Brasil, é mais perigoso que sessão do Conselho de Segurança da ONU.

Mas vejam a ironia: para que o óbvio fosse reconhecido como óbvio, foi preciso que o Supremo parasse para julgar…? isso mesmo: intervalos escolares.

É quase poético. A mais alta Corte do país decidindo aquilo que qualquer pessoa que já colocou os pés em uma escola sabe desde a pré-escola.

O problema, no fundo, é que o professor brasileiro virou uma espécie de entidade esotérica. Todo mundo louva. Todo mundo exalta. Todo mundo diz que sem professor não há futuro — e aí tentam descontar até o recreio. É a “pedagogia do aperto financeiro”. Uma aula prática de desvalorização profissional.

Pois bem, o STF colocou ponto final nessa ópera-bufa.

E aqui, permitam-me a ironia inevitável: ainda bem que temos o Supremo. Porque se dependesse de certas mentes criativas do Congresso, logo logo iriam sugerir que o professor só recebe quando está falando. Silêncio não remunera. Pausa não conta. Beber água é privilégio.

No mais, parabéns ao STF por mais uma contribuição inestimável à ordem constitucional do país: salvou o recreio. Faltam agora salvar o salário, a carreira, a infraestrutura e — quem sabe? — a dignidade.

Mas calma: uma coisa por vez. No Brasil, até o óbvio dá trabalho.

Detalhe final: os ministros do STF julgaram a causa sem nem mesmo, um intervalo para o cafezinho.


TEXTO DE:
alguém que já desistiu de esperar bom senso dos “gestores” da educação
Tarciso Tertuliano

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

A imprensa que só gosta de democracia quando ela é silenciosa

A boa e velha hipocrisia que tem um berço esplêndido onde sempre pode se deitar: a imprensa brasileira.

Bastou que manifestantes, entre eles indígenas e movimentos sociais, tentassem forçar a entrada na sede da COP 30, em Belém, para que o noticiário voltasse ao velho tom moralista: “vandalismo”, “ameaça à imagem do Brasil”, “problema para o governo Lula” e claro, "terrorismo".

Ora, ora. Desde quando democracia se mede por conveniência estética ou diplomática?

Protestar é um ato de soberania civil, não um problema de relações públicas. E quando o protesto vem justamente dos grupos que sustentam historicamente a luta ambiental e os direitos humanos — indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores —, é duplamente legítimo. Eles não são “base de Lula”; são base da democracia.

Sim, houve tensão. Sim, houve excesso. E daí? Desde quando democracia é um chá das cinco? A história é feita de embates, de disputas, de vozes que gritam quando ninguém quer ouvir. O protesto — mesmo o que extrapola — é um espelho do vigor democrático.

O que causa espanto é ver jornalistas que, durante o governo Bolsonaro, chamavam seus apoiadores de “gado” por aplaudirem cegamente todo absurdo, agora indignados porque parte da base lulista decidiu fazer o oposto: apoiar criticamente, cobrar coerência, exigir compromisso.

Há algo de doentio nessa lógica. Quando o eleitor é passivo, é “gado”. Quando é ativo, é “radical”.

Talvez essa seja a tal polarização que eles tanto insistem em nos convencer que existe.

A imprensa parece querer um eleitorado obediente, de preferência calado. Só que democracia não se faz com plateia — se faz com participação, até com conflito.

Lula, goste-se ou não, não foi eleito para ser um rei, e seus eleitores não são súditos. Quando protestam, não traem o governo; exercem o direito que diferencia cidadãos de seguidores.

É curioso ver que os mesmos que relativizaram invasões de golpistas em Brasília, chamando-as de “ manifestações de velhinhas com Bíblias debaixo dos sovacos”, agora tratam indígenas e ambientalistas como inimigos da civilização.

O peso e a medida variam conforme o interesse editorial — ou o incômodo que causa ver o povo real ocupando o espaço público.

O Brasil, anfitrião da COP 30, mostra ao mundo que sua democracia é viva — às vezes ruidosa, às vezes desconfortável, mas viva. Só os autoritários travestidos de moderados acham que o povo deve ficar quieto para não “manchar a imagem do país”.

Pois saibam: o que mancha a imagem do Brasil não é o protesto legítimo; é a hipocrisia de quem finge defender a democracia, mas só quando ela cabe no editorial de domingo.

Democracia não é um espetáculo de bons modos. É um terreno de disputas, de vozes, de críticas — inclusive às próprias autoridades que ajudamos a eleger. E, sinceramente, se a imprensa não entende isso, talvez o problema não esteja na “base de Lula”, mas na base da imprensa.


Em tempo, apesar de apoiar todo tipo de protesto pacífico e acreditar na liberdade de crítica, não acredito que a tentativa de invasão forçada a sede do COP 30, seja o caminho mais correto para alcançar os objetivos políticos.

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Feliz Aniversário

(por Antonio Gonzalez)

Fui uma criança tímida, moldada por uma educação de disciplina e valores firmes, onde a ética era a poetisa que ensinava humildade, simplicidade, solidariedade e gratidão. Dessa mistura nasceram os princípios que me sustentam.

Nos colégios Santa Rosa de Lima e Santo Inácio, era o típico CDF — estudioso, dedicado, confiante de que o mérito nascia do esforço. Tudo parecia seguir o curso natural, até que, aos treze anos, a vida virou poesia amarga. Meus pais em crise conjugal, desquite à vista. Sofri pelos dois e lutei contra o que parecia inevitável — eu não queria ser filho de pais separados.

A timidez deu lugar à revolta. De aluno exemplar, tornei-me repetente. Caí, despenquei, e quanto mais afundava, mais me reinventava.

Em 1977, o Encontro de Casais com Cristo os reconciliou — e me devolveu outro olhar sobre a vida. Já era outro: um adolescente dividido entre o anjo e o rebelde. O anjo subia favelas levando alimento e fé; o diabo e rebelde pichava “ABAIXO A DITADURA” e saia na porrada no Maracanã. 

Aos 16 anos, cantei Pra Não Dizer que Não Falei de Cristo (versão da música do Vandré), numa missa, na Igreja de São João Batista da Lagoa e fui denunciado à repressão. Monsenhor Arlindo Thiessen me defendeu; a Irmã Divina me escreveu:

Meu menino quase homem, idealista e radical, é pra você essa canção — simples, pobre, mas de coração.

Namorei, me apaixonei e desapaixonei. Casei com quem me quis, e em 1988 o mundo me chamou.

Vivi seis anos em Madrid — intensos, sedutores, plenos de descobertas. Estudei, trabalhei numa multinacional em posto de gerência, aprendi. Voltei ao Brasil por palavra dada, mas logo o destino desatou o nó. Em 1998 me separei — tomei um merecido pé na bunda, confesso.

Vieram novos amores, ao todo cinco casamentos, novos recomeços. Fui, voltei, lutei. O Fluminense foi parte da minha alma — vivi o clube como quem ama demais, com alegrias, feridas e glórias.

A Bahia me encantou. No Esporte Clube Bahia, em 2002, vivi uma grande fase — humildemente criei o melhor programa de sócio-torcedor do país, destaque na revista Lance+. Mas o sucesso é vento: passa.

No final daquele ano voltei à Espanha. Trabalhar na noite deu-me status, as luzes, o brilho e as armadilhas me seduziram. Veio a recessão e, com ela, a falência moral. Em 2012, meu Pai, já debilitado, disse:

“Volta para o Brasil”.

Dessa vez obedeci.

No regresso, encontrei novos amigos que viraram irmãos e reconheci, nos antigos, o verdadeiro significado de traição e filho da puta.  Aprendi que a solidão pode ser um lugar sagrado.

Hoje vivo em Taubaté, convivendo com doenças que me lembram que cada dia é um presente. Não sei como estarei amanhã, mas celebro cada amanhecer. Mato um leão por dia e sigo grato.

Lembro-me de 1991, em Madrid, quando disse à Beatriz, minha primeira esposa:

Achei que não chegaria aos 30; o que vier daqui pra frente é gorjeta de Deus.

Pois já são 34 anos de gorjeta — e que gorjeta maravilhosa!

Penso nos amigos que lutam contra o Parkinson, mais jovens que eu. Oro por eles, sempre! Agradeço por ainda estar aqui.

Dentro da minha solitude, celebro a dádiva de existir.

Feliz aniversário, Gonzalez.

TEXTO DE:

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

COP 30, O tornado não pediu licença

Enquanto em Belém do Pará se realiza a COP 30 — aquele encontro internacional onde líderes mundiais, cientistas, ambientalistas e até uns oportunistas muito bem vestidos se reúnem para discutir como evitar que o planeta vire um forno à lenha — no sempre altivo sul negacionsta do país, mais precisamente no Paraná, um tornado resolveu fazer uma visita.

E não houve governador ratazana, quro detivesse.

Sim, um tornado. Não, não é figura de linguagem. Não é metáfora. Não é exagero de ambientalista que “quer destruir o agronegócio”. Foi vento girando, arrancando telhado, matando gente — um tornado real, sem telegrama prévio, sem pedir habeas corpus preventivo.

E aí, claro, surgem as entrevistas de praxe. Aquelas que já fazem parte da pequena ópera bufa brasileira. O sujeito, de boné e convicções sólidas como gelatina ao sol, declara à TV:

Isso aí sempre aconteceu. A natureza é assim mesmo.

Claro. Sempre teve tornado no Paraná. E dinossauro no Pantanal. E unicórnio em Minas Gerais. Aliás, sempre teve tudo, não é? Sempre teve. É a frase favorita de quem não quer pensar, mas quer parecer muito seguro de si.

Enquanto em Belém se fala de descarbonização, neutralidade climática, justiça ambiental, responsabilidade global, no sul ainda se encontra quem ache que aquecimento global é invenção de francês vegetariano para acabar com o churrasco domingueiro.

Há uma ala — sempre muito convicta, sempre muito emocional — que ainda acredita que mudança climática é uma grande conspiração mundial. Um complô internacional. Uma obra comunista com Al Gore no lugar de grande líder conspirador.

E, claro, ONGs malvadas financiadas por George Soros, o réptiliano supremo.

Tudo isso para impedir o progresso, que na concepção desses gênios consiste basicamente em derrubar árvores com entusiasmo masculino.

Pois bem. O tornado passou. E não perguntou se alguém “acreditava” nele. Assim como a gravidade não pede voto, o clima não consulta opinião de youtubers.

Enquanto isso, em Belém, líderes mundiais tentam evitar justamente — vejam só que coincidência — eventos climáticos extremos. Aqueles que matam. Aqueles que destroem cidades. Aqueles que produzem manchetes fúnebres.

Mas é claro, é claro: “sempre aconteceu”.

A ironia é tão fina que chega a ter brilho:
— No Norte, discutem como impedir o desastre.
— No Sul, o desastre acontece, mas parte da população insiste que não está vendo.

É como se o apocalipse precisasse apresentar laudo de autenticidade emitido em cartório.

O tornado foi, digamos assim, didático. Mais didático do que painel trilíngue da COP, mais direto do que diplomata inglês com pressa para o chá das cinco.

Entrou, destruiu, saiu. Sem discurso. Sem PowerPoint. Sem hashtag. Deixando todas as construções planas, como a Terra que eles imaginam habitar.

A mensagem?
O clima não está negociando. Nem conosco, nem com eles.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Primeira Turma do STF tem unanimidade para rejeitar recurso e manter condenação de Bolsonaro

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) formou unanimidade de votos nesta sexta (7) para rejeitar recurso e manter a condenação do golpista Jair Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão no julgamento da tentativa de golpe.

O julgamento no plenário virtual vai até sexta-feira da semana que vem.

Até lá, os ministros podem inclusive, mudar de voto. Por isso o julgamento só será concluído daqui a sete dias. Então correrão os prazos para execução da pena, quando poderá ser executada a esperada prisão.

Votaram pela rejeição o relator, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia.

Luiz Fux deixou a Primeira Turma, para montar maioria golpista na Segunda Turma com o terrivelmente evangélico e o Kássio com K.

A prisão, de acordo com a lei, só é executada quando não cabem mais recursos. Justamente o que não foi cumprido no caso do presidente Lula, que ficou preso sem condenação, a mando do ex-juiz Sérgio Moro, com permissão do próprio STF.

A defesa do golpista Bolsonaro já indicou que deve entrar também com embargos infringentes, para questionar o mérito da sentença para tentar reduzir a pena.

Inutilmente porém, pois as regras do STF deixam claro que os embargos infringentes só caberiam caso Bolsonaro tivesse recebido dois votos pela absolvição, mas na Turma só havia um Fux.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A Gratidão tem de ser Eterna

primeira foto que eles tiraram juntos no Brasil, em 1958
O dia amanheceu e, sem motivo aparente, comecei a cantarolar os versos dos Titãs:

Família, família... papai, mamãe, titia. Família, família... almoça junto todo dia, nunca perde essa mania.

Logo pensei nos meus Pais, que em poucos dias completarão 65 anos de casados — mesmo em outra dimensão. Mais que uma vida, uma grande história.

Ambos sobreviveram à Guerra Civil Espanhola e à fome que devastou a Espanha sob Franco e seus falangistas. Meu Pai, nascido em 1931, aos 12 já trabalhava numa fábrica para alimentar os cinco irmãos, depois que o mais velho fugiu para o Canadá. Era o Regueiras — órfão, guerreiro e sonhador.

Minha mãe, nascida em 1935, ficou órfã cedo. Herdou uma pequena fortuna, dilapidada pelos tutores. 

Jovens, ambos decidiram fugir daquela Espanha cinzenta e faminta. Ele veio primeiro, lavando pratos para sobreviver.

Um dia me contou: “Nos primeiros anos no Brasil, só tinha uma diversão: os jogos do Fluminense. Quando não havia jogo, comprava uma lata de sardinha e o Jornal dos Sports, ia ao Parque Guinle e pensava na tua mãe.

Ela chegou em 1958, ainda noiva, trazendo na mala uma tuberculose — herança da miséria — curada em Itaipava. Casaram-se em 1960, num festão espanhol no Rio. Um ano depois, nasci. A essa altura meu Pai havia trazido 2 irmãos para o Brasil, que também fugiram da fome e dos pés descalços.

De lavador de pratos, meu Pai virou dono do restaurante mais famoso do Centro — o Yankee Brasil, na Rua Rodrigo Silva — ponto de encontro da alta sociedade carioca. De uma vaga numa vila da Rua Ipiranga, tornou-se proprietário de um apartamento de 190 m² em Botafogo, pago à vista. Seus dois filhos estudaram no Santo Inácio, o melhor e mais caro colégio do Estado.

Na última madrugada, sonhei com eles — uma lembrança real: quando compraram um terreno para a Maria, que trabalhava conosco, em Santa Isabel. Fizeram isso pouco antes de voltarem à Espanha, em 1986. Maria já se foi, mas seus filhos me seguem nas redes e sempre dizem o quanto nossa família mudou suas vidas.

Pepe e Pura sobreviveram à miséria, mas dela trouxeram o amor e a solidariedade. Um dia, quando revoltei-me com a ingratidão de alguém que eles haviam ajudado, minha mãe disse: “Antonio Carlos, a gratidão não deveria ter prazo de validade. Mas não cobre isso de quem tem o coração pequeno. Quem esquece de onde veio, por mais rico que seja, continua pobre por dentro. A gratidão, quando é de verdade, não morre. Apenas se transforma em luz e memória. Se é falsa, veste-se de trevas.

Deles herdei virtudes — entre elas, a solidariedade e a gratidão. Sou grato, sempre. Mas não cruzo o caminho de ninguém, nem permito que cruzem o meu.

Repito: sou grato, mas não perdoo quem é filho da puta comigo.


TEXTO DE:
Antonio Gonzalez