sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O boné, a farsa e a bala — a mentira útil do “CPX”

Algumas mentiras matam mais do que balas. E o Rio de Janeiro é, infelizmente, o laboratório perfeito para testá-las.

A mais recente — e talvez uma das mais grotescas — é a teoria conspiratória de que o Partido dos Trabalhadorescomanda o tráfico” e que Lula, ao usar um boné com a sigla “CPX”, estaria prestando homenagem a uma facção criminosa.

Pois bem. O leitor merece o mínimo de verdade, mesmo que ela atrapalhe a catarse ideológica de alguns.

CPX” não é sigla de quadrilha, nem senha secreta de traficante. “CPX” é abreviação de Complexo — como em Complexo do Alemão, Complexo da Penha, Complexo de Manguinhos. É a forma como os próprios moradores das favelas nomeiam suas comunidades. É identidade. É território. É pertencimento.

Mas basta o boné cair na cabeça de Lula — o mesmo que já presidiu o país por oito anos, e que agora volta à cena política vencendo nas urnas o verdugo do mal — para que os arautos da “guerra ao mal” vejam ali a prova de uma conspiração comuno-traficante. O delírio é completo.

A mentira, claro, não é inocente. Ela cumpre função política e simbólica.
Transforma pobres em cúmplices do crime. Transforma comunidades inteiras em extensão de facção. E, por tabela, transforma qualquer figura pública que dialogue com o povo da favela em “amigo do tráfico”.

É uma narrativa conveniente, quase elegante na sua perversidade: o Estado mata — e a culpa é de quem ousa falar com os vivos.

Enquanto isso, o governo do Rio de Janeiro exibe suas operações de “grande sucesso” no Complexo do Alemão e na Penha, com dezenas de mortos, helicópteros sobrevoando escolas e famílias presas dentro de casa.

O nome técnico disso é “ação de segurança”. O nome real é massacre autorizado.

E a narrativa do “boné criminoso” serve como maquiagem moral para o banho de sangue.

Se o presidente usa o boné do “CPX”, dizem, então o tráfico venceu.

Ora, venceu o quê?

O que venceu, de fato, foi a ignorância premiada, o preconceito institucionalizado e a velha mania de confundir favela com facção — como se pobreza fosse escolha, e o Estado, vítima.

No Brasil, especialmente no Rio, a mentira é política de segurança.
O morro é criminalizado, o governo é aplaudido, e quem tenta humanizar vira suspeito.

A fantasia do “CPX do crime” é mais do que uma fake news — é a desculpa perfeita para não olhar o abismo da desigualdade.

O boné de Lula não é símbolo de facção; é símbolo de convivência, de tentativa de diálogo, de um Estado que deveria estar presente sem fuzil na mão.

Mas para quem precisa de inimigos internos, não há espaço para convivência: só para tiros e slogans.

E assim seguimos — entre o barulho das armas e o silêncio das consciências — enquanto a mentira continua a fazer o que sempre faz: justificar a morte e culpar os vivos errados.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Na letra de “Bonsucesso 68” as primeiras gotas da violência no conta-gotas da vida - Parte 2

Na letra de “Bonsucesso 68” as primeiras gotas da violência no conta-gotas da vida.

Antonio Gonzalez


...

Por que não cortaram o mal pela raiz na década de 1970? 

Por que o discurso de que somente com acesso à educação se resolveria o problema da violência não foi transformado em realidade?

Por que as melhores condições de moradia não foram postas em prática?

Por que as políticas de segurança sempre visaram castrar uma vez o acontecido e jamais foram de prevenção?


Há 61 anos sob o lema de “bandido bom é bandido morto” nascia a Escuderia Le Cocq que originalmente era uma milícia de policiais no Rio de Janeiro que, ao longo dos anos, foi associada a grupos de extermínio. Posteriormente, o nome foi usado para uma associação de detetives particulares e ex-policiais. 

Posteriormente o Esquadrão da Morte e o Mão Branca.

O filme Cidade de Deus embora lançado em 2002, narra cerca de 20 anos de história (1960–1980) da formação e do endurecimento da violência nas favelas cariocas.

Na década 1960 mostra o surgimento da favela Cidade de Deus, criada pelo governo como conjunto habitacional para famílias removidas de outras áreas do Rio.

Já nos anos 1970 acompanha o crescimento da criminalidade e o domínio das gangues de jovens, com destaque para a ascensão de Zé Pequeno.

No início dos anos 1980 - o filme termina nesse período - surge uma nova geração de traficantes tomando o controle da comunidade.

Tudo isso rolou durante os governos Médici, Geisel e Figueiredo.  Por que eles não cortaram a cabeça daquela serpente?

Se você chegou até aqui sabe que a atualidade é apenas um remake, como a recente novela VALE TUDO.

Afirmo que o que vimos ontem não pode ser resumido aos atuais governos, estadual e federal. A atualidade é apenas a consequência de quem teve oportunidade de não deixar a víbora crescer, mas para nada se preocupou com as classes menos favorecidas, nem com a gente preta, nem com o que o salário mínimo da época permitia colocar na geladeira. Somente visou a ganância financeira. De pai para filho, os sobrenomes se repetem.

Essa guerra não começou neste século. Não obstante é urgente que seja resolvida.  Mas um povo que não conhece a sua história certamente falará abobrinhas sobre como resolver as questões da Segurança, da Saúde, da Educação e da Habitação.

É evidente que não se pode pensar em resolver o problema da Segurança Pública com o fígado, menos ainda com ódio e racismo.

Repito, segurança só funciona se for de prevenção. No resto, sem mudar o conceito de todas as pontas de direção – governos, polícias e população (principalmente na hora de votar) – continuaremos com uma única certeza: a espera da data do próximo extermínio.

Sem embargo, vale questionar quem financia a entrada de armas e drogas no país e quem fecha os olhos para tal.

Mas isso é papo para outro dia.

Minha solidariedade às famílias dos policiais mortos. E que a bandidagem entenda que o crime – na escala que eles frequentam – somente permite 2 saídas: ou a cadeia ou um paletó de madeira.


TEXTO DE:

Antonio Gonzalez



Na letra de “Bonsucesso 68” as primeiras gotas da violência no conta-gotas da vida

Na letra de “Bonsucesso 68” as primeiras gotas da violência no conta-gotas da vida.

Antonio Gonzalez


Na enfermaria do PS Central de Taubaté pelo tubo do conta-gotas o soro baixava lentamente enquanto a simpática enfermeira (uma carioca de Duque de Caxias) aplicava-me insulina na barriga.

Na televisão imagens do Rio de Janeiro mostravam corpos enfileirados numa rua, nas cercanias da Praça São Lucas, no Complexo da Penha.

E antes que você leitor defina o seu sentimento a esse texto, deixo claro que não gosto de bandido. Muito menos as minhas letras terão perfil de elogios à esquerda ou de críticas à direita. Quem me conhece sabe que eu não conjugo a hipocrisia, nem abro mão da história que vi passar nesses quase 64 anos de vida, sem esquecer do que vivi e li.

De saída, a minha mente começou a cantarolar a letra de uma música de uma banda carioca. A canção “Bonsucesso ’68”, composta por Arnaldo Brandão e Tavinho Paes para a banda Hanoi-Hanoi, foi lançada em 1986.

A música remete ao ambiente e aos acontecimentos do bairro Bonsucesso na década de 1960, trazendo também referências à figura do célebre assaltante de bancos Lúcio Flávio.

Quem conhece a cidade do Rio de Janeiro, sabe que no bairro de Bonsucesso encontramos artérias vitais do Complexo do Alemão

E a canção diz o seguinte:

Lúcio Flávio morava na Roma, Fernando C.O. lá na New York, Tavinho era um menino na Bruxelas, entre a Londres e a Paris

Havia a turma do Melo, o cinema era o Paraíso, a favela era a Perereca e eu tocava no baile do Domingo.

E ninguém tava na Europa, não tinha Waterloo, não era exílio, política era coisa da Zona Sul.

E ninguém tava na Europa, não tinha Liverpool, era tudo em Bonsucesso, Rio de Janeiro 68, América do Sul.

E a gente era só, Mato Grosso e Paraguai, Bolívia veio depois e o resto veio atrás.

Colômbia, Nicarágua, Malvinas, são argentinas.

Ligação direta, tá no ronco do motor, ligação direta, tá no ronco do motor.

E ninguém tava na Europa, não tinha Waterloo, não era exílio, política era coisa da Zona Sul.

E ninguém tava na Europa, não tinha Liverpool, era tudo em Bonsucesso, Rio de Janeiro 68, América do Sul”.

Em 1968 eu cumpri 7 anos de idade, foi quando aprendi a ler. E naquela tentativa de juntar vogais com consoantes, esperava meu Pai chegar do trabalho, todos os dias às 19 horas (da mesma forma que diariamente se levantava às 5 da manhã para estar às 6 no Centro da cidade, para abrir o restaurante).

Com ele vinha o jornal O GLOBO. Carinhosamente ele dizia “vamos ver se você realmente já sabe ler”. Era óbvio que aquele tímido guri sempre começava pelas páginas esportivas, pelas matérias que envolviam o Fluminense.

E entre as manchetes jornalísticas e o Repórter Esso, da Tv Tupi – apresentado pelos lendários Heron Domingues e Gontijo Teodoro, eu começava a captar informações que hoje, passado mais de meio século, como de um filme se tratasse, habitam a minha memória. 

Da quadrilha do famosíssimo Lúcio Flavio (citado pela voz grave do excelente baixista Arnaldo Brandão, cuja família tinha uma oficina de carros na rua Paulo Barreto, em Botafogo – onde na atualidade também se encontra o seu estúdio musical) faziam parte seu irmão, Nijini, e seu cunhado, Fernando C.O., entre outros.

O grupo liderado por Lúcio Flávio foi sendo dizimado ao longo do tempo, seja em confrontos com a polícia, seja em execuções dentro dos presídios do Rio de Janeiro.

Liéce de Paula Pinto e Nijini Renato Villar Lírio, irmão de Lúcio Flávio, foram executados por policiais que, para encobrir o crime, encenaram um falso confronto: os corpos foram levados até as proximidades do Hotel Plaza, em Copacabana, colocados em um carro e novamente metralhados para simular resistência à prisão.

Outros integrantes do bando — Rivaldo Morais Carneiro, conhecido como Martha Rocha; Antonio Branco; e Francisco Rosa da Silva, o Horroroso — foram mortos a tiros no Presídio Evaristo de Moraes Filho, na Quinta da Boa Vista, após liderarem uma rebelião que resultou na morte do coronel da PM Darci Bitencourt, feito refém.

Também tiveram fim trágico Fernando C. O., cunhado de Nijini, assassinado por outros presos na Frei Caneca, e Júlio Augusto Diegues, o Portuguesinho, morto no mesmo presídio pouco depois, após ter estrangulado detentos com a ajuda de um comparsa.

Lúcio Flávio Vilar Lírio teve uma trajetória criminal marcada por muitos processos, fugas espetaculares e longos períodos de prisão — o que o tornou uma das figuras mais conhecidas do submundo carioca entre as décadas de 1960 e 1970.

Estima-se que Lúcio Flávio tenha respondido a mais de 30 inquéritos policiais por assaltos a bancos, roubos de carros e formação de quadrilha. Ele era considerado um dos criminosos mais procurados do país no auge de sua atividade.

Ele protagonizou três fugas notórias: Da Penitenciária Lemos de Brito (RJ) – escapou em 1968. Do Presídio de Ilha Grande – em 1970, durante uma rebelião e da Frei Caneca (RJ) – em 1973, após subornar carcereiros.

Ao longo de sua vida, passou cerca de 10 anos encarcerado, de forma intermitente. Foi recapturado várias vezes e, em 1975, estava novamente preso quando foi assassinado dentro do presídio da Frei Caneca, em circunstâncias nunca esclarecidas.

Entretanto não podemos escrever a história do bandido Lúcio Flávio sem citar Mariel Mariscot que era um policial civil da antiga Divisão de Roubos e Furtos (DRF), conhecido por sua atuação violenta e também por seus laços com o crime organizado. Tornou-se uma figura lendária no chamado Esquadrão da Morte, grupo de extermínio formado por policiais que executavam criminosos sob o pretexto de “fazer justiça”.

Nos bastidores da criminalidade carioca, Mariel e Lúcio Flávio conviveram no mesmo ambiente, pois muitos policiais corruptos protegiam ou extorquiam assaltantes de banco. Lúcio Flávio chegou a afirmar que pagava propina a policiais para poder atuar e que Mariel fazia parte desse esquema de corrupção.

Após essas denúncias, Lúcio Flávio foi preso novamente e, em 1975, assassinado dentro do presídio Frei Caneca. Muitos acreditam que sua morte foi queima de arquivo, e que policiais ligados a Mariel Mariscot participaram ou foram cúmplices da execução.

Com o passar do tempo Mariel (ex-policial civil e ex-integrante do Esquadrão da Morte, expulso da corporação) passou a atuar no crime organizado, especialmente em assaltos a bancos e esquemas de segurança privada ilegais. Apesar de ter sido temido e respeitado, acumulou muitos inimigos tanto entre criminosos quanto entre ex-colegas de polícia.

Mariel Mariscot foi assassinado em 8 de outubro de 1981, quando estava estacionando seu carro para uma reunião com banqueiros do jogo do bicho. Ele que um dia foi conhecido como o "homem de ouro" da polícia, foi morto tentando entrar no mundo da contravenção como banqueiro. 

Lúcio Flávio e Mariel Mariscot representavam os dois lados de uma mesma moeda — o bandido inteligente e o policial violento — ambos imersos em um sistema onde as fronteiras entre crime e lei se confundiam.

Voltando ao seio familiar, passamos por certas situações de medo. No início de 1973, meu Pai perdeu um funcionário, peão da cozinha, conhecido como Caveirinha – de tão magro e baixinho que era – assassinado num ônibus a caminho de Nova Iguaçu. Durante o assalto ele disse ao ladrão que não tinha dinheiro e o meliante retrucou: “se você tiver mentindo eu vou te dar um tiro na cabeça, mas se não for mentira, te darei um tiro no peito”. Foi assassinado por falar a verdade.

Em maio daquele mesmo ano, um sábado pela manhã, ao voltar do Colégio Santo Inácio, faltando 200 metros para chegar em casa, 6 pivetes, um deles portando um revólver, roubaram-me na rua Paulino Fernandes, nº 15, em Botafogo.

Aquele relógio, um Classic suíço, que meu Pai me presenteou por ter sido o melhor aluno daquele colégio jesuíta em 1971, mudou de mãos.  A título de curiosidade, aquele roubo foi cometido em frente a uma clínica clandestina onde se praticava o aborto. Sim, há 52 anos atrás já existiam clinicas para que as donzelas das classes altas da Zona Sul, pudessem abortar.   

Em 1975, na rua Rodrigo Silva, 32, entre a 7 de setembro e Assembleia, onde Papai era o dono do Restaurante Yankee Brasil, 4 assaltantes invadiram o estabelecimento. O Vitorino, um garçom cria de São João de Meriti, conseguiu escapar e aos gritos avisou aos seguranças (policiais de folga) do ponto de bicho que pertencia ao Mário, então proprietário de mais de uma dezena de cavalos que corriam nas pistas do Jockey Club Brasileiro. Troca de tiros, um meliante morto, 2 presos e o outro fugiu.

De regresso à atualidade do que aconteceu ontem nos Complexos do Alemão e da Penha, sou obrigado a perguntar-me: 

Por que não cortaram o mal pela raiz na década de 1970? 

Por que o discurso de que somente com acesso à educação se resolveria o problema da violência não foi transformado em realidade?

Por que as melhores condições de moradia não foram postas em prática?

Por que as políticas de segurança sempre visaram castrar uma vez o acontecido e jamais foram de prevenção?


Há 61 anos sob o lema de “bandido bom é bandido morto” nascia a Escuderia Le Cocq que originalmente era uma milícia de policiais no Rio de Janeiro que, ao longo dos anos, foi associada a grupos de extermínio. Posteriormente, o nome foi usado para uma associação de detetives particulares e ex-policiais. 

Posteriormente o Esquadrão da Morte e o Mão Branca.

O filme Cidade de Deus embora lançado em 2002, narra cerca de 20 anos de história (1960–1980) da formação e do endurecimento da violência nas favelas cariocas.

Na década 1960 mostra o surgimento da favela Cidade de Deus, criada pelo governo como conjunto habitacional para famílias removidas de outras áreas do Rio.

Já nos anos 1970 acompanha o crescimento da criminalidade e o domínio das gangues de jovens, com destaque para a ascensão de Zé Pequeno.

No início dos anos 1980 - o filme termina nesse período - surge uma nova geração de traficantes tomando o controle da comunidade.

Tudo isso rolou durante os governos Médici, Geisel e Figueiredo.  Por que eles não cortaram a cabeça daquela serpente?

Se você chegou até aqui sabe que a atualidade é apenas um remake, como a recente novela VALE TUDO.


Continua...


TEXTO DE:

Antonio Gonzalez

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Neocoronelismo e poder: a crítica que todos tem medo de fazer

PARTE 1

A manobra do governo do Rio de Janeiro na data de hoje não teve nada a ver com segurança pública. Mas sim com política, poder e neo-coronelismo.

Política, porque em diversas dimensões, foi a antecipação de disputas eleitorais de 2026.

Poder, porque se trata, antes de tudo, de uma demonstração de força.

Neo-coronelista, porque tem como finalidade a consolidação de novos currais eleitorais dominados pela violência armada como sustentáculo de um sistema político que não é particular do RJ do século XXI, mas que nessas terras, se demonstra com extrema crueza para quem sabe observar.

Em uma dimensão, o governo do RJ entra em colisão com o Governo Federal, com massiva mobilização de seu aparato militar próprio, jogando o caos gerado pela operação na conta da falta de apoio do ente superior.

Em outra medida, assegura-se novos mercados lucrativos para narcoquadrilhas e milicianos que encontram na extrema-direita, no RJ, especialmente no PL, sua representação política.

E, finalmente, funciona triplamente de um ponto de vista eleitoral: as imagens como propaganda para os já convertidos, o caos como fator legitimador de certos discursos a partir do medo, e de forma objetiva, a captura de novos territórios que, sob terror armado, tem seus direitos políticos cerceados.

Existem diversos grupos, páginas, e reprodutores de conteúdos que se associam na intenção de formar uma narrativa na qual, a partir do medo e do choque com o caos, a visão de mundo da extrema-direita se torne palatável.

Não para as pessoas em zonas conflagradas e dominadas, pois a lógica funciona de sorte que estes já vivem um estado de exceção autoritário não importando qual grupo armado domine a região, mas para as pessoas ricas e de classe média, que assistem e legitimam tudo de eleição em eleição.

PARTE 2

Enquanto isso, surpreendendo um total de zero pessoas, a mídia hegemônica cumpre um papel legitimador de todo o processo.

Da mesma forma que o fez durante o processo de implantação das UPPs.

Cumpre notar, porém, o fenômeno da desinformação proposital e operação de guerra psicológica, tanto por parte de grupos criminosos quanto por parte do próprio governo do RJ.

Existem diversos grupos, páginas, e reprodutores de conteúdos que se associam na intenção de formar uma narrativa na qual, a partir do medo e do choque com o caos, a visão de mundo da extrema-direita se torne palatável.

Não para as pessoas em zonas conflagradas e dominadas, pois a lógica funciona de sorte que estes já vivem um estado de exceção autoritário não importando qual grupo armado domine a região, mas para as pessoas ricas e de classe média, que assistem e legitimam tudo de eleição em eleição. 

Essa tragédia política neo-coronelista do Estado do Rio de Janeiro, que lembraria a qualquer um da República Oligárquica, se desenhou a partir da morte do Brizolismo como força política organizada, e com a sabotagem e destruição do projeto dos CIEPs e do socialismo moreno fluminense.

TEXTO DE:
Daniel Albuquerque Abramo

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A galinha vermelha: o surto anticomunista de Juliana Zanata

Oh! Os delírios políticos que beiram o humor e a loucura de mãos dadas com o orgulho da burrice natural.

A deputada Juliana Zanata (confunde cultura infantil com doutrinação marxista) acaba de descobrir, em sua missão divina contra o comunismo, um novo inimigo da liberdade: a Galinha Pintadinha.

Sim, ela mesma, a cantora de “Borboletinha”, é suspeita de integrar uma célula do PSOL.

Aparentemente, entre um vídeo colorido e outro de animação para bebês, a parlamentar enxergou não um projeto pedagógico de entretenimento, mas um plano gramsciano para infiltrar a foice e o martelo nos berçários.

Talvez imagine que, por trás do galo Carijó e do pintinho amarelinho, se esconda um comitê revolucionário.

A cena seria cômica, não fosse trágica. O problema não é rir, é chorar pela pobreza intelectual de quem ocupa uma cadeira pública e confunde educação com ideologia e infância com ameaça.

E pensar que, se fosse coerente, a deputada deveria também declarar guerra à Mafalda, a personagem de Quino que, fazia críticas sociais consistentes, com um humor corrosivo e uma visão progressista do mundo.

Mafalda ser considerada uma personagem de esquerda humanista, com fortes tendências socialistas democráticasembora o próprio Quino rejeitasse rótulos partidários.

Mas não: Mafalda é leitura demais.

E leitura dá trabalho. É muito mais fácil inventar comunismo na Galinha Pintadinha do que enfrentar as contradições reais do país.

É o anticomunismo de pelúcia, o espantalho ideológico que transforma qualquer coisa minimamente racional em “ameaça à família tradicional”.

Juliana Zanata parece representar a nova geração de cruzados do ridículo, do grotesco, aqueles que, sem compreender o mínimo de história ou política, veem Karl Marx escondido atrás de cada desenho animado.

Amanhã, quem sabe, acusarão o Pequeno Príncipe de socialista utópico, o Sítio do Picapau Amarelo de leninista e a Turma da Mônica de bolivariana.

Enquanto isso, o Brasil real,o das escolas precárias, dos hospitais lotados, da fome e da ignorância,segue esquecido.

A Galinha Pintadinha canta, as crianças riem, e certos políticos, em seu desespero por relevância, cacarejam ideologia onde só há inocência.

No fim, talvez o único traço de socialismo nessa história seja o da própria deputada, que insiste em dividir a ignorância coletivamente com todo o país.

Finalmente, explicado porque tantas flores na cabeça da deputada, o adubo abundante que povoa o interior do seu crânio.

O imperialismo de Lula e o delírio da esquerda toda pura

Existe no Brasil, uma ala da Esquerda que vive em permanente estado de assembleia estudantil. Uma turma que tem febre por citar Trotsky, Lenin, Marx, mas que sentia nojinho de Brizola e odeia o próprio Lula.

Para esse grupo, o encontro entre Lula e Donald Trump não é diplomacia, é submissão, é traição. O ex-metalúrgico, dizem, finalmente revelou sua face oculta: um agente do imperialismo ianque infiltrado no PT desde os anos 1980. Falta só aparecer de terno e gravata da CIA.

Pois é. O mesmo Lula que enfrentou o FMI, que colocou pobres na universidade e incomodou o andar de cima, agora virou, segundo os puritanos da Esquerda, o ventríloquo do Tio Sam. O raciocínio é uma obra-prima da autofagia ideológica: se o líder da Esquerda não atende à fantasia revolucionária, resta destruí-lo.

Esses militantes da pureza política enxergam o mundo em escala binária, ou se está contra o império, ou é cúmplice dele. Diplomacia, diálogo, pragmatismo? Palavras burguesas, diriam. O problema é que, no mundo real, países não se governam com panfletos.

Lula faz o que estadistas fazem: fala com quem tem poder. E isso inclui Biden, Xi Jinping, Macron, Papa Francisco e agora (por que não?), Trump. O resto é poesia de bar, proferida entre um café e um jazz indignado.

No fundo, essa esquerda que acusa Lula de “agir pelo imperialismo” não odeia o imperialismo. Odeia a realidade.

O dia em que Lula deixou a extrema-direita sem script

Há dias em que a realidade prega peças bem cruéis na bozosfera.

O encontro entre Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump foi um desses momentos de puro desespero ideológico. A ala bolsonarista, acostumada a viver de rótulos e espantalhos, acordou sem saber se chorava, orava para um pneu ou desmentia com mentiras, o que via.

Sim, caro leitor, o “bebumLula apertou a mão do “rei do mundoTrump (o mesmo Trump que Bolsonaro tratava como guru, farol e quase entidade espiritual). A cena desmontou, num único gesto, anos de narrativa delirante. Como atacar o petista por fazer exatamente o que o bolsonarismo sempre sonhou?

O problema da extrema-direita é que ela precisa do inimigo. Sem o espantalho do “marxismo cultural”, sem o fantasmas do “globalismo” e do "comunismo", resta o quê? A política real, e essa, sabemos, é território onde o populismo tosco se perde.

O encontro entre Lula e Trump não foi apenas simbólico: foi cirúrgico.

Mostrou que Lula entende o jogo do poder internacional, e joga melhor do que os amadores do Twitter. Ao contrário do bolsonarismo, que confunde diplomacia com gritaria, o presidente brasileiro mostrou que conversa até com quem pensa diferente. E, em política externa, isso se chama maturidade.

A turma da direita radical, desorientada, passou o dia tateando o chão. Alguns tentaram argumentar que era “marketing”. Outros fingiram que o encontro não existiu. E houve até quem insinuasse que Trump teria sido “enganado”.

Patético.

É o retrato de um movimento que não sabe mais o que dizer, e que assiste, impotente, ao crescimento de Lula nas pesquisas, apesar da má vontade da mídia e da histeria da oposição.

Aliás, sobre a mídia: parte dela segue praticando o velho esporte nacional o “Lulismo envergonhado”. Admite a competência do presidente em sussurros, mas corre para publicar a próxima crítica travestida de “análise isenta”.

É a neutralidade seletiva de sempre: o incômodo de ver o ex-operário agir com a estatura que os “homens de bem” achavam que só eles possuíam.

Lula, goste-se ou não, é um político de fôlego histórico. Enquanto a oposição se debate entre teorias conspiratórias e vídeos de WhatsApp, ele fala com líderes mundiais: de Biden a Xi Jinping, agora passando por Trump. É o tal “isolamento internacional” que só existe nas manchetes fabricadas por quem torce contra o Brasil.

No fim, a cena é quase poética: Trump e Lula, dois homens que dividiram seus países, sentados à mesa. E a extrema-direita brasileira, que se alimentava do ódio a um e da devoção ao outro, sem saber para qual santo rezar.

Lula não apenas desconcertou os adversários. Desarmou o discurso. E, convenhamos, nada é mais devastador para quem vive de ressentimento do que ver o alvo de seus ataques conversar civilizadamente com o próprio ídolo.

No xadrez político, o rei segue de pé, e os peões da fúria ideológica continuam tropeçando uns nos outros, sem entender por que o jogo mudou.

Lula e Trump: o encontro que deixou a extrema-direita sem roteiro

Há coisas na política que beiram o sublime, ou o desespero, dependendo do ponto de vista.

O encontro entre Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump é uma dessas cenas que desmontam discursos e deixam a tropa da extrema-direita brasileira em estado de pane.

Sim, Lula, o “comunista”, o “inimigo do Ocidente”, sentado à mesa com o ídolo máximo do bolsonarismo planetário.

Foi o momento em que o script ruiu. A bolha ideológica acordou sem saber se queimava fotos ou erguia altares. Afinal, como atacar o ex-metalúrgico por dialogar com o homem que Jair Bolsonaro tratava quase como um santo de terno e gravata?

Os influenciadores de ultradireita (aqueles que vivem de gritar “comunista!” a cada sílaba de Lula) passaram o dia em busca de um novo adjetivo. Não acharam. Ficaram sem inimigo.

Porque, convenhamos, se o líder da esquerda brasileira e o empresário ícone do conservadorismo americano conseguem se sentar e conversar civilizadamente, o que sobra da narrativa apocalíptica de que o PT quer transformar o Brasil numa Venezuela tropical?

A verdade é que o gesto de Lula foi político, inteligente e para desespero dos adversários, eficaz.

Mostra que o presidente brasileiro se move com desenvoltura no tabuleiro internacional, enquanto a oposição interna insiste em jogar damas num mundo de xadrez.

Lula sabe que o poder não se exerce apenas com ideologia, mas com pragmatismo. E, ironia das ironias, esse pragmatismo — tão demonizado pelos mesmos que agora se calam — foi o que sempre distinguiu os grandes líderes. O Brasil precisa de pontes, não de trincheiras.

Mas a ala bolsonarista, órfã de argumentos, tenta fingir que nada aconteceu. No fundo, sofre com um dilema existencial: se Lula está se aproximando de Trump, com quem eles vão brigar? Vão chamar o próprio Trump de petista?

Enquanto isso, as pesquisas mostram Lula em ascensão, mesmo sob o bombardeio diário da oposição e a tradicional má vontade de setores da imprensa, que fingem neutralidade enquanto torcem pela ruína do governo.

Não é novidade, parte da mídia brasileira tem dificuldade em lidar com o sucesso de Lula. Afinal, ele desafia o dogma de que só tecnocratas bem-nascidos podem governar.

No fim, o encontro com Trump serviu como espelho: mostrou quem tem visão de estadista e quem vive de ressentimento. Lula, mais uma vez, mostrou que sabe jogar o jogo grande. E os que apostaram em sua queda ficaram, mais uma vez, sem saber para que lado correr.

No tabuleiro político, o rei segue de pé, e, ao que tudo indica, avançando casas enquanto a oposição continua discutindo as regras.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Ódio do bem, continua sendo ódio

Tenho visto pessoas e canais de esquerda tentando justificar a surra que um professor levou em Brasília.

Um grande amigo me enviou um post sobre esse professor. O que aconteceu é que uma aluna, que se recusava largar o celular na aula, foi repreendida pelo professor. O pai da aluna foi na escola, invadiu a sala e esmurrou o professor na cabeça. 

Esse professor, Emerson, tem um canal no YouTube chamado 'Professor Opressor'. Ele é apoiador de Bolsonaro.

Há seis anos, ele fez um churrasco em sala, para comemorar a eleição de Bolsonaro. Os alunos comeram com ele.

A secretaria de educação do Distrito Federal abriu inquérito administrativo, e até o momento não emitiu decisão.

Depois daquele episódio, o professor não mais se manifestou em sala. 

Independente de você achar que bolsonarista tem que apanhar, esse professor não apanhou por ser bolsonarista.

Ele apanhou porque exigiu que o celular fosse guardado, já que é lei no Distrito Federal. Nesse caso, quem apanhou foi o professor. Se fosse numa manifestação, ele segurando bandeira de golpe de Estado, aí, é outro papo. 

Mas foi no ambiente escolar, e ele tinha respaldo legal. 

Quem bateu nele também não é um justiceiro de esquerda. O pai da moça, pelo comportamento violento e explosivo, muito provavelmente é outro bolsonarista.

E isso é típico deles. Se dois bolsonaristas brigam, eu como pipoca. Mas o pai não é herói de nada, e ali ele bateu num professor. Poderia ter entrado de arma, e matado. Então, a esquerda ia defender isso?

Algumas pessoas me disseram que a moça teria problema de visão e precisa do celular. A lei estabelece que no caso dela, não há exceção, devendo a escola fornecer meios e assentos próximos ao quadro e ao professor. 

Então vocês precisam avaliar melhor.

Se a meta é bater em bolsonarista, assumam, e façam isso numa manifestação. Lá estarão muitos bolsonaristas pra apanhar. Mas no exercício estrito de uma função, ou seja, nada do que o professor estava pedindo tinha caráter politico, então nesse caso, não se pode justificar a surra.

Professores já apanham muito.

Apanham do Estado, da PM, salários miseráveis, saúde mental destruída.

Vocês não deveriam justificar a surra num professor, porque vocês vão ultrapassar uma linha perigosa.

Lembrem-se que existem milhares de outros professores e professoras no país.

Organizem o ódio. 
Ódio bom, é ódio organizado. 

Não é bater em motoboy. É explodir o IFood.

Não é bater no bancário. É incendiar o Itaú.

Não é bater em professor. É aniquilar quem mantém a crise na educação.

TEXTO DE:
Anderson França

terça-feira, 21 de outubro de 2025

STFux

Há movimentos no Supremo Tribunal Federal que, ainda que amparados no regimento, soam — para dizer o mínimo — estranhos. Um deles é o pedido do ministro Luiz Fux para deixar a Primeira Turma e migrar para a Segunda Turma, onde já estão Kássio Nunes Marques, André Mendonça, Gilmar Mendes e Edson Fachin.

A princípio, trata-se de um gesto burocrático. Um ministro muda de turma, o tribunal redistribui as cadeiras, e a vida segue. Mas, como tudo na política e no Judiciário brasileiros, há os fatos e há o subtexto — e o subtexto, aqui, não está nada sub, mas bem descarado.

Fux sai da Primeira Turma justamente no meio dos julgamentos sobre a tentativa de golpe de Estado, aquele mesmo em que o ex-presidente e seus comparsas tentaram subverter o resultado eleitoral.

 Coincidência? Pode ser. Mas o ministro, como diria Nelson Rodrigues, é um homem experiente demais para acreditar em coincidências.

O voto de 14 horas

Na Primeira Turma, Fux ficou isolado. Foi o único a divergir da maioria que condenou os envolvidos na trama golpista.

Seu voto (com argumentos retirados não dos anais do Direito, mas dos anais próprios), negava a competência do Supremo para julgar os acusados. Era o tipo de decisão que faria o bolsonarismo abrir um sorriso de orelha a orelha e postar figurinhas comemorativas em grupos de WhatsApp.

Agora, o ministro quer mudar de turma. Ora, a Segunda Turma abriga justamente dois ministros indicados pelo condenado por associação criminosa, Jair BolsonaroKássio e Mendonça.

A matemática é simples, embora o cálculo seja político: três votos de perfil serviçal podem, em alguns casos, inverter o placar. É como se o ministro Fux tentasse reconfigurar o mapa do tribunal, criando uma turma mais “simpática” às teses que o bolsofacismo gostaria de ver prosperar.

A liturgia que se "fux"

Nada disso é ilegal. O regimento do STF prevê a troca. Mas há uma diferença abissal entre o que é permitido e o que é decente. O gesto de Fux, num momento em que o tribunal é alvo de ataques coordenados, fragiliza a imagem de coesão e imparcialidade da Corte. E pior: alimenta a narrativa de que há “ministros de esquerda” e “ministros de direita”, como se a Constituição tivesse partido.

Em tempos normais, talvez fosse um detalhe. Mas não vivemos tempos normais. Depois do 8 de janeiro, qualquer movimento que soe como aceno a um “tribunal alternativo” precisa ser examinado com lupa.

Fux sabe disso, mas não se envergonha em nada.

O STF não é um lixão ideológico

O Supremo não é, ou não deveria ser, um condomínio de afinidades políticas.

O ministro que muda de turma porque discorda de seus pares não busca a harmonia da Justiça, mas o conforto da conveniência. E conveniência, no tribunal constitucional, é sinônimo de descrédito.

In Fux we não mais trust...

A função de um ministro do STF é resistir ao ruído, não adaptar-se a ele. Se Fux, pressionado pelo isolamento, busca refúgio em uma turma mais “amigável”, então o problema não é de colegiado, é de convicção.

E tentar criar um tribunal bolsonarista dentro do STF é motivo pra que seu pedido de impeachment seja cogitado.

Lectio proposita, lectio discita

Luiz Fux já presidiu o STF. Conhece a liturgia, a história e o peso simbólico de cada gesto. Por isso mesmo, sua decisão causa perplexidade. O Supremo não pode parecer um tabuleiro de xadrez em que ministros mudam de casa conforme a conveniência das peças.

Ao fim e ao cabo, não é o destino de Fux que está em jogo, mas o da credibilidade institucional da Corte. E credibilidade, uma vez rachada, não se recompõe com votos bem redigidos nem com latim forense. Se bem, que credibilidade e Fux, não cabem na mesma frase.

O ministro pode alegar que apenas exerce um direito regimental, e estará certo. Mas há decisões que, embora jurídicas, cheiram a política. E o perfume, nesse caso, não é dos melhores.


TEXTO DE:

Tarciso Tertuliano

sábado, 18 de outubro de 2025

Brasil Escravo

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.
- Joaquim Nabuco


Então me deparo com outro exemplo do espelho que reflete a nossa “modernização”.

Ou melhor: nossa aparente modernização, pois os alicerces ainda estão sendo levantados sobre carne escrava.

Uma mulher de 79 anos, submetida há mais de cinco décadas a jornada de 24 horas por dia e sete dias por semana, em regime de trabalho doméstico, sem registro, sem direitos, sem descanso.

Uma escrava. (clique e leia a matéria)

Ela dormia no mesmo quarto da patroa, não tinha folga, não deixava de estar à disposição — inclusive à noite, levantando-se para cuidar da senhora de mais de 100 anos.


Não há disfarce nisso: trata-se de “jornada exaustiva”, critério explícito do que se entende como “trabalho análogo à escravidão”.

E o que dizer? Que a culpa é do Brasil tropical, que nunca desertou da senzala?

Pode até soar melodramático, mas cada caso como esse reforça que não avançamos tanto quantos gostaríamos de acreditar. A República que se gaba de ser democrática ainda comporta em seu seio a lógica da servidão.

Isso tem nome: racismo estrutural e discriminação de classe.

Quando se coloca uma mulher por 50 anos em condição de sobrecarga laboral, por trás está um mecanismo que une desigualdade racial, vulnerabilidade econômica, invisibilidade social.

Não é coincidência. É sistema.

O país que escravizou milhões agora segue, com aparente igualitarismo, poupando o discurso e mantendo o método.

A ausência de carteira assinada, ausência de recolhimentos previdenciários, FGTS não pago: são ainda sintomas de que o “mercado de trabalho” brasileiro reserva para muitos o limbo jurídico-social. No caso, os auditores constataram que não havia registro em carteira nem recolhimento de benefícios.

Que se devolva um direito — retroativo — àquela mulher é razoável, mas já tardio. Decorre de força-tarefa, autuação, investigação.

Mas e a prevenção? A fiscalização permanente, eficiente, contundente?

Aqui perguntamos: quantos milhares de idosos, crianças, mulheres, quantas pessoas vulneráveis, quantas domésticas e domésticos, permanecem fora do radar, aguardando salvamento que talvez nunca venha?

Tornamos normal o inaceitável.

Quando uma prática tão abjeta é considerada somente “mais um caso”, e não o escândalo que deveria provocar, vive-se o pior dos mundos: a naturalização da indignidade.

E isto implica que o Brasil (a eterna ladainha do país em transformação), permite que a humilhação laboral seja ordinária.

Deixamos de ouvir os gritos de socorro, deixamos de nos importar. Não passa de um mi-mi-mi de um a geração preguiçosa (nos dizem).

Não se engane. Para que esse caso tenha ocorrido em uma comunidade pobre, teve de contar com a cumplicidade não só do Estado, mas também de parentes, amigos e vizinhos. Todos seduzidos por esse estado de prevaricação ética e moral.

Não estamos falando de um caso ocorrido em uma cidade fictícia de uma novela da Globo ou de algum rincão distante no nosso enorme sertão, mas de um caso ocorrido em pleno Rio de Janeiro, mais precisamente na Zona Oeste, no bairro de São Miguel.

Este episódio não é exceção — é sintoma.

Sintoma de uma nação que proclamou liberdade há mais de um século, mas que esquece de liberar o trabalho das algemas do passado. É hora de parar de tratar esse tipo de violação como “caso isolado”. É preciso ver, reagir, e por fim nessas condições.

Se o Estado, o poder público, as corporações, os patrões domésticos e a sociedade não se chocarem (de fato), com o fato de que uma mulher de quase 80 anos trabalhou sem pausa por mais de 50 anos, então estamos todos jogados na condição de cúmplices.

E nós, cidadãos, precisaremos bater forte o dedo nessa ferida: o Brasil moderno ainda pisa em correntes invisíveis.

Geralmente amarradas em pele preta.

Porque só quando a impunidade sistemática for abolida, e o trabalho digno se tornar regra  e não exceção é que poderemos dizer que essa República largou as amarras da senzala.


Por:

Tarciso Tertuliano Paixão

. . .


SEGUE ABAIXO, RELATÓRIO DE ESTATÍSTICAS RECENTES E MEDIDAS PRÁTICAS CONTRA O TRABALHO ESCRAVO

(conteúdo gerado pelo Chat GPT, pode conter erros)

  • A definição legal de “trabalho em condição análoga à de escravo” inclui: jornada exaustiva, condições degradantes, restrição de locomoção ou trabalho forçado. (Serviços e Informações do Brasil)

  • Entre 1995 e 2022, cerca de 60.125 trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão no Brasil. (Brasil Escola)

  • Em 2023, os órgãos oficiais registraram 3.190 trabalhadores resgatados nessa condição — o maior número em mais de uma década. (Serviços e Informações do Brasil)

  • Em 2024, os dados divulgados apontam para 2.004 trabalhadores resgatados por fiscalizações específicas. (Serviços e Informações do Brasil)

  • No mesmo ano (2024), o Brasil registrou 3.959 denúncias de trabalho análogo à escravidão — este é o maior número desde que o sistema de denúncias (Disque 100) começou a registrar. (CUT - Central Única dos Trabalhadores)

  • Setores com maior número de casos em 2024: construção de edifícios (293 resgatados), cultivo de café (214), cultivo de cebola (194). (Agência Gov)

  • Perfil das vítimas: segundo levantamento, 83% se autodeclaravam negros; 58% nasceram na Região Nordeste; 43% não haviam completado o ensino fundamental. (Politize)

 Medidas de combate e avanços

  • O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e outras instâncias federais realizaram 1.035 ações fiscais específicas sobre trabalho análogo à escravidão em 2024. (Serviços e Informações do Brasil)

  • A “Política Pública de Erradicação ao Trabalho Escravo” completa 30 anos e, até o momento, já totalizou mais de 65 mil trabalhadores resgatados no Brasil. (Blog da Econet)

  • O cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo é atualizado semestralmente para dar transparência. (Serviços e Informações do Brasil)

  • Propõem-se instrumentos de responsabilização mais fortes: por exemplo, o PL 789/2023 que sugere que editais públicos exijam contratação de pessoas resgatadas. (Senado Federal)

 Sugestões de medidas concretas que deveriam ser ampliadas

  1. Fiscalização constante e ampliada

    • Aumentar o número de auditorias-fiscais do trabalho, com especial atenção ao setor doméstico e urbano (que ainda tem baixa incidência de resgates, mas alta vulnerabilidade).

    • Priorizar denúncias e investigação rápida em casos onde há indícios de jornada exaustiva, retenção de documentos, ou alojamentos precários.

  2. Proteção e apoio às vítimas

    • Garantir rapidamente o pagamento de verbas trabalhistas, rescisórias e benefícios (como seguro-desemprego para trabalhador resgatado).

    • Criar mecanismos de acompanhamento das vítimas para evitar retaliação, estigmatização ou retorno à condição de vulnerabilidade.

  3. Responsabilização de empregadores e contratantes

    • Ampliar publicamente a “lista suja” de empregadores que submetem trabalhadores a condição análoga à de escravo e impedir que contratem com o setor público.

    • Tornar obrigatório para empresas e cadeias de fornecimento um relatório de “risco de trabalho análogo à escravidão” e auditoria independente.

  4. Educação, informação e mobilização social

    • Campanhas contínuas de esclarecimento para trabalhadores vulneráveis saberem seus direitos e reconhecerem sinais de exploração.

    • Incentivar denúncias em plataformas seguras, com garantia de anonimato. (Exemplo: aumento de 15% nas denúncias em 2024) (CUT - Central Única dos Trabalhadores)

    • Incluir escolas, sindicatos e comunidades de base no acompanhamento das cadeias produtivas, para visibilizar práticas que parecem “normais” mas são violações.

  5. Rastreabilidade das cadeias produtivas

    • Identificar produtos cuja produção frequentemente envolve trabalho em condições análogas à escravidão (ex: café, cana-de-açúcar, construção civil) e exigir transparência na origem.

    • Adotar selos ou certificações antiescravidão que garantam aos consumidores que estão comprando de empresas éticas.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Entre Inocente e o Impune

Francisco Mairlon Barros Aguiar voltou a ver o céu sem grades depois de 15 anos preso injustamente.

Quinze.

Uma adolescência inteira, uma faculdade, um casamento, uma vida inteira caberiam nesse tempo em que ele respirou o ar viciado das celas, condenado por um crime que, hoje se sabe, não cometeu.

O caso — o famoso crime da 113 Sul — é daqueles em que o Estado se perde no labirinto das próprias certezas. A condenação, agora anulada pelo Superior Tribunal de Justiça, foi construída sobre provas frágeis, uma confissão duvidosa e depoimentos sem sustentação em juízo.

Não havia DNA, não havia testemunho sólido, não havia sequer coerência entre os relatos. Ainda assim, bastou.

Bastou para que o Judiciário fizesse o que o destino jamais deveria fazer: tomar de um homem o direito de existir fora das muralhas.

Pois bem. Ao corrigir o erro, o STJ não fez um ato de benevolência — apenas cumpriu a lei.

Tarde, é verdade, mas cumpriu.

A decisão traz à memória uma das frases mais célebres do direito ocidental, escrita pelo jurista inglês William Blackstone, no século XVIII:

“É melhor que dez culpados escapem do que um inocente sofra.”

Essa máxima não é apenas um ideal teórico. É o pilar moral de qualquer civilização que se pretenda justa. Porque quando o Estado pune sem provas, ele se iguala ao criminoso — e, pior, faz da lei o instrumento da injustiça.

Meu amigo Paulo-Roberto Andel diria que se confunde justiça com justiçamento.

O caso de Mairlon é uma advertência grave. Mostra que a pressa em satisfazer a opinião pública, ou o desejo de fechar um inquérito a qualquer custo, pode custar o que o direito deveria proteger acima de tudo: a inocência.

Mas há o outro lado — o avesso sombrio dessa mesma moeda. Se Mairlon é o símbolo do inocente punido sem provas, há quem se transforme no culpado poupado apesar delas. E aqui o nome que ecoa é o de Jair Bolsonaro.

Nos processos que o cercam, o que não falta são indícios: vídeos, atas, mensagens, reuniões golpistas registradas, testemunhos convergentes, planos detalhados. Há tanto material que o verdadeiro desafio parece ser fingir que nada disso existe.

Se o primeiro foi esmagado pela ausência de provas, o segundo tenta sobreviver à abundância delas. Um condenado por presunção; outro blindado pela conveniência. Um perdeu quinze anos da vida; o outro parece disposto a perder o país.

A Justiça brasileira precisa decidir de que lado está — se do lado de Blackstone ou do lado da impunidade seletiva. Porque, no Brasil, o provérbio parece invertido: é melhor que dez inocentes sofram do que um poderoso seja condenado.

Mairlon sai das grades com a alma ferida, mas com o nome limpo. Bolsonaro ainda circula terceirizado em palanques de redes sociais, zombando das instituições que deveriam contê-lo.

O primeiro é a prova de que o Estado pode errar. O segundo, a de que pode fingir que não erra nunca.

Entre o inocente injustiçado e o culpado impune, mora a fronteira moral que define uma nação. E, até agora, o Brasil continua tropeçando nela.


Por
Tarciso Tertuliano Paixão

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Paz à venda: o Nobel e sua perigosa vocação para o autoengano

E lá vamos nós outra vez.

O comitê do Nobel da Paz, essa instituição nórdica que parece cada vez mais inclinada a confundir coragem com conveniência, decidiu premiar María Corina Machado — a venezuelana que, sem dúvida, tem resistido bravamente ao autoritarismo de Nicolás Maduro, mas cuja consagração revela mais sobre o próprio comitê do que sobre a realidade da Venezuela.

Sim, Corina é símbolo de resistência, e disso ninguém duvida. O problema é outro: é o uso inflacionário do símbolo. O Nobel da Paz, desde há muito, tornou-se uma espécie de selo de intenções, e não de realizações.

É o prêmio da esperança — e, às vezes, da hipocrisia bem-intencionada.

O “Prêmio da Paz” em tempos de guerra simbólica

Não é a primeira vez que o Nobel decide premiar o futuro em vez do presente. Em 1973, Henry Kissinger — sim, o mesmo Kissinger dos bombardeios no Camboja — recebeu o prêmio ao lado do vietnamita Lê Đức Thọ, por um acordo de paz que, ironicamente, não produziu paz alguma. Thọ, aliás, recusou o prêmio. Kissinger, não. Dois membros do comitê renunciaram em protesto. E a guerra continuou.

Em 1994, Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin subiram juntos ao palco de Oslo. Parecia o prenúncio de uma era de fraternidade. Aplaudiram-se as boas intenções. E, pouco tempo depois, o processo de Oslo naufragou. A paz no Oriente Médio — essa fantasia de séculos — continuou sendo a "vida eterna prometida" que nunca chega.

Em 2009, o comitê se superou. Deu o prêmio a Barack Obama, com apenas nove meses de Casa Branca. Por quê? Pelas promessas de campanha. Por sua retórica amável. Foi o Nobel do marketing, a celebração do “branding humanista”. O próprio secretário do comitê reconheceu, anos depois, que talvez tenham exagerado no entusiasmo. Obama é aquele que se sentou na Casa Branca junto com Hillary Clinton e Joe Biden para acompanhar em tempo real o assassinato de Osama bin Laden. Fica a pergunta: fosse Donald Trump, o comitê teria dado a ele o prêmio que tanto ambiciona?

María Corina Machado e a terceirização da esperança

Agora é a vez de María Corina Machado.

De novo, o prêmio não consagra um feito, mas uma expectativa. Premia-se a coragem, o discurso, a resistência. Tudo nobre — mas tudo ainda no plano da promessa.

Corina não conduziu uma transição, não negociou um acordo de paz, não transformou as instituições venezuelanas. Recebe o Nobel não pelo que fez, mas pelo que supostamente representa.

É a estética da virtude. Premia-se uma ilusão, não um resultado.
O Nobel da Paz, ao que parece, virou uma espécie de campanha de relações públicas internacional, em que cada prêmio é um editorial político travestido de homenagem moral.

E há um detalhe incômodo que poucos ousam tocar: quando o comitê norueguês decide, por exemplo, premiar uma figura de oposição a um regime inimigo do Ocidente, ele envia também um recado geopolítico. O prêmio deixa de ser apenas um reconhecimento moral e se torna um instrumento diplomático, um manto ético sobre uma tomada de posição. A paz se torna um paradoxo, um ato de guerra simbólica.

A politização rotineira

Nada disso é novo. O Nobel da Paz sempre foi político — e é bom que seja.

O problema é quando ele se torna partidário. O prêmio que um dia distinguiu Nelson Mandela ou Martin Luther King — homens que produziram paz em meio ao conflito — hoje corre o risco de se transformar num diploma de intenções corretas.

Sim, Corina é corajosa. Enfrenta uma ditadura. Mas a pergunta incômoda é: isso basta para a mais alta distinção moral do planeta?


Se for assim, talvez seja hora de reconhecer também as centenas de jornalistas, ativistas e professores que, em contextos tão ou mais adversos, arriscam a vida sem o mesmo aparato midiático, sem a mesma projeção internacional.

O Nobel parece ter criado sua própria moeda simbólica — e está gastando-a depressa.

O prestígio perdido

Quando um prêmio tão prestigioso se banaliza, perde-se algo mais do que credibilidade. Perde-se o valor da coerência. Se o Nobel da Paz serve apenas para sinalizar as boas intenções de uma elite internacional ansiosa por mostrar virtude, ele deixa de ser o farol moral que um dia pretendeu ser e se torna um espelho de vaidades.

É o mesmo dilema das redes sociais aplicado à diplomacia: o gesto importa mais do que o conteúdo; o aplauso substitui o resultado.

Não se trata de desmerecer María Corina Machado — que, repito, é uma mulher de coragem admirável. Trata-se de criticar um comitê que, cada vez mais, parece seduzido pela estética da virtude e menos comprometido com o critério histórico da paz.

A paz como narrativa

O prêmio dado a Corina pode até ser justo — mas é, antes de tudo, conveniente. Conveniente ao Ocidente, conveniente à própria consciência da Europa liberal que gosta de premiar causas certas, desde que à distância.

O risco é a transformação definitiva do Nobel da Paz em um reality moral, em que o troféu é entregue ao personagem que melhor interpreta o papel de herói.

Talvez o comitê do Nobel devesse, ele próprio, inscrever-se em sua lista de candidatos — afinal, poucos têm feito tanto para simbolizar a distância entre a intenção e o resultado.

E a paz, essa palavra que um dia significou algo sólido, vai se tornando apenas isso: uma ideia bonita, reciclável, rentável — e, por vezes, tristemente banal.


Por:

Tarciso Tertuliano Paixão

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Barroso deixa o Supremo — e o Brasil se olha no espelho

Luís Roberto Barroso decidiu antecipar a própria aposentadoria do Supremo Tribunal Federal.

Poderia, em tese, permanecer até 2033, mas anunciou que deixará o cargo antes. E não há como ignorar o simbolismo disso. Quando um ministro do STF — especialmente um com protagonismo tão intenso — decide pendurar a toga por vontade própria, o país deveria parar por um minuto para pensar.

Não se trata de um gesto banal. É, antes, uma espécie de radiografia do tempo que vivemos.

O gesto e o seu tempo

Barroso sai por decisão pessoal — e ninguém o obriga. Não há pressão institucional, nem conspiração palaciana, ou medo de restrições americanas.

Há, sim, o cansaço de quem passou mais de uma década conduzindo a própria biografia sob as luzes dos holofotes permanente.

O ministro foi, talvez, o mais midiático dos ministros de sua geração — e também o mais consciente do valor pedagógico da palavra pública.

No entanto, há uma fadiga no ar. O ambiente de violência política, os ataques sistemáticos ao STF, o desgaste diário de ser alvo tanto de aplausos histéricos quanto de ódios irracionais — tudo isso cobra um preço. A toga pesa, e Barroso decidiu se livrar do fardo.

Mas é claro: quando alguém desse porte deixa o tribunal, abre-se imediatamente a temporada de apostas e intrigas — a BET da sucessão.

A cadeira vaga e a ganância de Brasília

A política, essa criatura faminta, não suporta o vazio. Mal Barroso anunciou sua saída e já se ouvem nomes sussurrados nos corredores do Planalto e do Congresso: Jorge Messias, Bruno Dantas, Rodrigo Pacheco, Vinícius Carvalho.

A lista é longa, e o critério, como sempre, duvidoso.

O presidente Lula terá, mais uma vez, a oportunidade de indicar um ministro — e com isso, moldar o equilíbrio interno da Corte.

O problema é que o STF não é uma coleção de simpatias ideológicas. É uma instituição com personalidade própria, e, por vezes, mais resistente do que parece às vontades do Planalto.

Qualquer observador mais sério sabe que não há “lulismo” ou “bolsonarismo” que domestique a toga por completo. Exceto nos casos flagrantes de Kassio Nunes Marques e André Mendonça.

A história recente mostra que ministros nomeados por governos de esquerda, de direita ou de centro cedo se emancipam do berço político que os gerou.

A questão não é apenas quem entrará, mas que Supremo queremos preservar.

O legado e as feridas

Barroso deixa uma marca inegável. Foi o ministro que empurrou o debate público para além da letra fria da Constituição. Falou de ética, de empatia, de democracia militante — e, algumas vezes, também de si mesmo mais do que o necessário.

Foi protagonista de decisões de enorme impacto: a limitação do foro privilegiado, as medidas sanitárias na pandemia, o transporte gratuito nas eleições, entre outras. Às vezes, brilhou. Em outras, exagerou na retórica. É possível — e saudável — reconhecer ambos os lados.

Houve quem o acusasse de ativismo judicial; houve quem o visse como voz iluminista num país mergulhado no obscurantismo. Ambas as leituras têm algo de verdade. Mas o essencial é notar que Barroso acreditava no poder civilizador do Direito.

E, convenhamos, isso já o distingue da barbárie retórica que toma conta das redes sociais e, não raro, da própria política.

A sucessão e o espelho da democracia

Sua saída devolve ao país uma pergunta incômoda: que papel esperamos que o STF cumpra? Queremos um tribunal que diga “sim” ao governo de plantão, ou um poder que limite o voluntarismo presidencial e a histeria legislativa e das ruas?

Porque é disso que se trata. A indicação do próximo ministro não será apenas uma formalidade — será, como sempre, uma disputa pela alma institucional do país.

Barroso deixa um Supremo que, goste-se ou não, voltou a ser protagonista do debate nacional. O tribunal que julgou a Lava Jato, que enfrentou o comportamento criminoso praticado por que Bolsonaro na pandemia, que enfrentou tentativas de ruptura democrática, é também o tribunal que hoje tenta reencontrar o tom.

Quem vier a ocupar a vaga herdará não apenas processos e gabinetes, mas um papel civilizatório num ambiente de brutalização crescente.

O fim

Barroso deixa o Supremo — mas não o debate público. Ainda o ouviremos. Seu gesto, contudo, encerra um ciclo.

O ciclo de um STF composto por ministros que acreditavam poder salvar o país da má política.

Talvez seja hora de o país, enfim, salvar a política de si mesmo — e permitir que o Judiciário volte a exercer o que sempre foi seu maior poder: o da moderação.

A toga, afinal, não é um palanque. E, paradoxalmente, Barroso compreendeu isso no instante em que decidiu deixá-la.