sábado, 18 de outubro de 2025

Brasil Escravo

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.
- Joaquim Nabuco


Então me deparo com outro exemplo do espelho que reflete a nossa “modernização”.

Ou melhor: nossa aparente modernização, pois os alicerces ainda estão sendo levantados sobre carne escrava.

Uma mulher de 79 anos, submetida há mais de cinco décadas a jornada de 24 horas por dia e sete dias por semana, em regime de trabalho doméstico, sem registro, sem direitos, sem descanso.

Uma escrava. (clique e leia a matéria)

Ela dormia no mesmo quarto da patroa, não tinha folga, não deixava de estar à disposição — inclusive à noite, levantando-se para cuidar da senhora de mais de 100 anos.


Não há disfarce nisso: trata-se de “jornada exaustiva”, critério explícito do que se entende como “trabalho análogo à escravidão”.

E o que dizer? Que a culpa é do Brasil tropical, que nunca desertou da senzala?

Pode até soar melodramático, mas cada caso como esse reforça que não avançamos tanto quantos gostaríamos de acreditar. A República que se gaba de ser democrática ainda comporta em seu seio a lógica da servidão.

Isso tem nome: racismo estrutural e discriminação de classe.

Quando se coloca uma mulher por 50 anos em condição de sobrecarga laboral, por trás está um mecanismo que une desigualdade racial, vulnerabilidade econômica, invisibilidade social.

Não é coincidência. É sistema.

O país que escravizou milhões agora segue, com aparente igualitarismo, poupando o discurso e mantendo o método.

A ausência de carteira assinada, ausência de recolhimentos previdenciários, FGTS não pago: são ainda sintomas de que o “mercado de trabalho” brasileiro reserva para muitos o limbo jurídico-social. No caso, os auditores constataram que não havia registro em carteira nem recolhimento de benefícios.

Que se devolva um direito — retroativo — àquela mulher é razoável, mas já tardio. Decorre de força-tarefa, autuação, investigação.

Mas e a prevenção? A fiscalização permanente, eficiente, contundente?

Aqui perguntamos: quantos milhares de idosos, crianças, mulheres, quantas pessoas vulneráveis, quantas domésticas e domésticos, permanecem fora do radar, aguardando salvamento que talvez nunca venha?

Tornamos normal o inaceitável.

Quando uma prática tão abjeta é considerada somente “mais um caso”, e não o escândalo que deveria provocar, vive-se o pior dos mundos: a naturalização da indignidade.

E isto implica que o Brasil (a eterna ladainha do país em transformação), permite que a humilhação laboral seja ordinária.

Deixamos de ouvir os gritos de socorro, deixamos de nos importar. Não passa de um mi-mi-mi de um a geração preguiçosa (nos dizem).

Não se engane. Para que esse caso tenha ocorrido em uma comunidade pobre, teve de contar com a cumplicidade não só do Estado, mas também de parentes, amigos e vizinhos. Todos seduzidos por esse estado de prevaricação ética e moral.

Não estamos falando de um caso ocorrido em uma cidade fictícia de uma novela da Globo ou de algum rincão distante no nosso enorme sertão, mas de um caso ocorrido em pleno Rio de Janeiro, mais precisamente na Zona Oeste, no bairro de São Miguel.

Este episódio não é exceção — é sintoma.

Sintoma de uma nação que proclamou liberdade há mais de um século, mas que esquece de liberar o trabalho das algemas do passado. É hora de parar de tratar esse tipo de violação como “caso isolado”. É preciso ver, reagir, e por fim nessas condições.

Se o Estado, o poder público, as corporações, os patrões domésticos e a sociedade não se chocarem (de fato), com o fato de que uma mulher de quase 80 anos trabalhou sem pausa por mais de 50 anos, então estamos todos jogados na condição de cúmplices.

E nós, cidadãos, precisaremos bater forte o dedo nessa ferida: o Brasil moderno ainda pisa em correntes invisíveis.

Geralmente amarradas em pele preta.

Porque só quando a impunidade sistemática for abolida, e o trabalho digno se tornar regra  e não exceção é que poderemos dizer que essa República largou as amarras da senzala.


Por:

Tarciso Tertuliano Paixão

. . .


SEGUE ABAIXO, RELATÓRIO DE ESTATÍSTICAS RECENTES E MEDIDAS PRÁTICAS CONTRA O TRABALHO ESCRAVO

(conteúdo gerado pelo Chat GPT, pode conter erros)

  • A definição legal de “trabalho em condição análoga à de escravo” inclui: jornada exaustiva, condições degradantes, restrição de locomoção ou trabalho forçado. (Serviços e Informações do Brasil)

  • Entre 1995 e 2022, cerca de 60.125 trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão no Brasil. (Brasil Escola)

  • Em 2023, os órgãos oficiais registraram 3.190 trabalhadores resgatados nessa condição — o maior número em mais de uma década. (Serviços e Informações do Brasil)

  • Em 2024, os dados divulgados apontam para 2.004 trabalhadores resgatados por fiscalizações específicas. (Serviços e Informações do Brasil)

  • No mesmo ano (2024), o Brasil registrou 3.959 denúncias de trabalho análogo à escravidão — este é o maior número desde que o sistema de denúncias (Disque 100) começou a registrar. (CUT - Central Única dos Trabalhadores)

  • Setores com maior número de casos em 2024: construção de edifícios (293 resgatados), cultivo de café (214), cultivo de cebola (194). (Agência Gov)

  • Perfil das vítimas: segundo levantamento, 83% se autodeclaravam negros; 58% nasceram na Região Nordeste; 43% não haviam completado o ensino fundamental. (Politize)

 Medidas de combate e avanços

  • O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e outras instâncias federais realizaram 1.035 ações fiscais específicas sobre trabalho análogo à escravidão em 2024. (Serviços e Informações do Brasil)

  • A “Política Pública de Erradicação ao Trabalho Escravo” completa 30 anos e, até o momento, já totalizou mais de 65 mil trabalhadores resgatados no Brasil. (Blog da Econet)

  • O cadastro de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à de escravo é atualizado semestralmente para dar transparência. (Serviços e Informações do Brasil)

  • Propõem-se instrumentos de responsabilização mais fortes: por exemplo, o PL 789/2023 que sugere que editais públicos exijam contratação de pessoas resgatadas. (Senado Federal)

 Sugestões de medidas concretas que deveriam ser ampliadas

  1. Fiscalização constante e ampliada

    • Aumentar o número de auditorias-fiscais do trabalho, com especial atenção ao setor doméstico e urbano (que ainda tem baixa incidência de resgates, mas alta vulnerabilidade).

    • Priorizar denúncias e investigação rápida em casos onde há indícios de jornada exaustiva, retenção de documentos, ou alojamentos precários.

  2. Proteção e apoio às vítimas

    • Garantir rapidamente o pagamento de verbas trabalhistas, rescisórias e benefícios (como seguro-desemprego para trabalhador resgatado).

    • Criar mecanismos de acompanhamento das vítimas para evitar retaliação, estigmatização ou retorno à condição de vulnerabilidade.

  3. Responsabilização de empregadores e contratantes

    • Ampliar publicamente a “lista suja” de empregadores que submetem trabalhadores a condição análoga à de escravo e impedir que contratem com o setor público.

    • Tornar obrigatório para empresas e cadeias de fornecimento um relatório de “risco de trabalho análogo à escravidão” e auditoria independente.

  4. Educação, informação e mobilização social

    • Campanhas contínuas de esclarecimento para trabalhadores vulneráveis saberem seus direitos e reconhecerem sinais de exploração.

    • Incentivar denúncias em plataformas seguras, com garantia de anonimato. (Exemplo: aumento de 15% nas denúncias em 2024) (CUT - Central Única dos Trabalhadores)

    • Incluir escolas, sindicatos e comunidades de base no acompanhamento das cadeias produtivas, para visibilizar práticas que parecem “normais” mas são violações.

  5. Rastreabilidade das cadeias produtivas

    • Identificar produtos cuja produção frequentemente envolve trabalho em condições análogas à escravidão (ex: café, cana-de-açúcar, construção civil) e exigir transparência na origem.

    • Adotar selos ou certificações antiescravidão que garantam aos consumidores que estão comprando de empresas éticas.

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