Moradores em situação de rua no Rio de Janeiro - foto: Gabriel de Paiva |
[Oh, é uma tarde carioca tão legal que deveríamos aproveitá-la ao máximo, quero dizer, deveríamos alguns de nós porque a maioria não pode aproveitar nada. Apenas sobrevive e sofre. Alguns de nós se solidarizam e se doem por isso. A maioria, não. O céu do Rio é lindo e azul celeste, mas isso não impede sinos que estão a dobrar por ora - é que os assassinados também se despedem em dias de sol, e nós temos muitos assassinados, quero dizer, alguns de nós porque a maioria é de alienação e descompromisso assustadores.
[A jovem linda, alva, de cabelos Chanel pretíssimos, sorve uma taça de vinho num restaurante do Largo do Machado. Linda e só, ela alterna os tragos com espiadas lentas no smartphone como se estivesse a ler um texto caudaloso. Sozinha no salão, ela fita a rua e percebe que, à altura do muro que toca o vidro da porta, um pequeno par de olhos é que a fita. Um garotinho preto, talvez de seis ou sete anos, com seus pequenos e aflitos olhos de jabuticaba, talvez um dos garotinhos que vendem drops na região - e que olha pelo vidro porque é sua única chance de estar ali. Em alguns segundos, ela toma um gole, aterrissa a taça na mesa e abre um sorriso que só realça sua beleza. Pequenininho, o menino não alcança a altura do vidro, mas o franzido de sua testa e o brilho do pequeno olhar de criança não deixam dúvidas: ele também está sorrindo. Uma jovem e bela mulher, um garotinho e dois segundos da fraternidade mundial.
[O Arco Metropolitano é uma das vias mais perigosas do Brasil e não são poucas as suas histórias de violência. Ontem tivemos mais um, com uma garotinha de três anos fuzilada por um policial. Em condições normais, isso bastaria para manifestações de dezenas de milhares de pessoas nas ruas, mas a desumanidade tomou a sociedade de tal forma que as piores coisas são naturalizadas. Ninguém liga. É feriado. Uhu! Aguardemos a próxima manchete com a nova criança barbarizada.
[Jovens de classe média, casais bem sucedidos, intelectuais legítimos e pretensos, moderninhos e descolados, muitos são os frequentadores do CCBB num sábado, para apreciar a exposição de Evandro Teixeira, um dos maiores fotógrafos do mundo. Tempos atrás foi a vez de Walter Firmo, outro gênio. Evandro fez a crônica fotográfica de um Brasil dos mais difíceis, o da ditadura 1964-1985. É certo que as pessoas estão no CCBB em busca de arte, cultura e informação, mas seria bom que refletissem sobre o tempo maligno que Evandro registrou como ninguém, e que até hoje mantém feridas profundas na vida brasileira - basta pensar em tanta gente que foi torturada, estuprada, esquartejada e incinerada em nome do fascismo travestido de patriotismo, que só fez o povo sofrer.
[Dois camaradas de vinte e poucos anos conversam num botequim perto da Nova Petrobras, no coração do centro. Parecem novos beatniks à primeira vista. Enquanto bebem uma cerveja artesanal, um fala para o outro que está completamente apaixonado por uma garota do trabalho, ao que tudo indica numa agência de publicidade, mas que tem muitas dúvidas se será retribuído na paixão e que, em caso positivo, precisará preparar os pais para terem uma nora trans. O outro dá uma gargalhada de corar Chiquinho Zanzibar, o exótico personagem da noite carioca, e diz: "Irmão, vai fundo. É 2023! Bem-fundo, hein? O apaixonado beatnik dá um sorriso meio sem graça. Numa mesa próxima, uma velhinha com a amaldiçoada camisa da CBF arregala os olhos. O garçom abre outra artesanal e tudo bem.
[A garotada chutando uma bolinha de plástico numa área de lazer do Méier, enquanto transeuntes passam com as compras de supermercado e o bar está apinhado de gente. Na calçada bem em frente, a marquise é a única companheira de um velhinho que pede esmolas quase chorando. Quase ninguém liga.
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