segunda-feira, 8 de maio de 2023

Lancheiro

 

Outro dia passou uma postagem pelo Facebbok, algo como "Em que você queria trabalhar quando era criança?". Respondi "lancheiro". Uns amigos riram, mas era a pura realidade. 

Meu sonho era trabalhar de atendente no Boni's de Copacabana. Meu pai me levava lá nos anos 1970 para lanchar. Naquela época, a máquina de refrigerante era uma novidade. Vinha o copo com deliciosa espuma e o misto quente sequinho, com queijo derretido e pão de forma brilhando. Era gostoso demais, tão gostoso que eu pensava em trabalhar na lanchonete, não somente para fazer sanduíches deliciosos mas também por achar, pela natural ingenuidade de criança, que acabaria sobrando um ou outro misto quente para mim. É um trabalho digno, honesto e correto, mas também sacrificante - você fica muitas horas em pé, o salário é sempre menor do que suas necessidades básicas, enfim. De toda forma, era o que eu sonhava. 

Tempos depois, eu queria ser PM. Morava perto do quartel e o coronel liberou meu amigo Fred e eu para jogarmos numa máquina de pinball que havia por lá. Nós nos divertíamos e pensávamos: se você for PM, além de poder jogar de graça, ainda tem quadra de futebol de salão no trabalho. Ah, e todo soldado tinha um carro legal, bem legal - eles ficavam estacionados na nossa rua. Vinte e tantos anos depois, caímos na gargalhada vendo "Tropa de Elite" juntos: o filme explicava a incrível matemática que une soldos baixos a carrões. 

Também pensei em ser piloto de Fórmula 1. Quando criança, eu gostava de carros, das corridas e achava o máximo aquela velocidade. Tempos de Alan Jones, Carlos Reutemann, Ronnie Peterson, Jacques Lafitte e de Nelson Piquet, antes de se prestar aos ridículos atuais. Mas como seria um piloto? Eu não tinha dinheiro nem pro lanche, quanto mais pra ir morar fora. Impossível. 

Depois passei a adolescência sonhando com um emprego de carteira assinada, o que só viria muitos anos mais tarde. No resto, uma exploração só. Fui camelô - assim como agora -, caixa, office boy, professor particular, e passei a década de 1980 penando, tão ruim quanto é agora para os jovens. Só fui descobrir o que era um emprego estável no meio dos anos 1990, com direitos trabalhistas e tal, mas depois de ser rapinado como estagiário por anos e anos. Depois de tanto tempo, era legal ter uma sensação de pertencimento, salário legal e tal. Ajudei minha família até o fim. 

Fico pensando hoje nos garotos desesperados, lutando para trabalhar, lutando para estudar, sonhando em ajudar seus pais, tentando buscar um espacinho nesse mundo tão escroto e cruel, sem direito algum, a maioria com uma bicicleta alugada, levando comidas para as pessoas, mas sem poder comer o mesmo prato. Outro dia alguém se assustou quando eu disse que é comum ver muita gente a caminho da Central do Brasil, por volta das cinco da tarde, comendo biscoitos baratos na rua para aliviar a fome do almoço que não aconteceu, e que nunca acontece porque a maioria das pessoas não têm dinheiro para almoçar. 

Só o que me resta são saudades da minha ingenuidade de criança: eu queria que todo mundo pudesse comer um ótimo misto quente. O bom de ser criança é que invariavelmente você tem fé, seja nas pessoas, nas firmas ou nas causas. Depois a gente cresce e finalmente entende o que dizia Vinicius de Moraes: "Na vida, poucas coisas valem a pena". É uma dura e imprescindível verdade que só pude constatar depois de uma longa e dolorosa caminhada. 

Quando passo em Copacabana, gosto de espiar o Boni's. Nunca mais fui lá, vi que foi todo modificado. De toda forma, ali está um pedacinho meu de quando eu ainda iria descobrir o mundo.

Há um outro motivo, triste e engraçado também: na esquina da Siqueira com Avenida Copacabana, por muitos anos houve a figura do Sr. Bolinha, que era bem pequenininho devido a uma doença de nascença. Ele ficava em cima de uma caixa de sapatos ou algum papelão pedindo dinheiro. Mesmo diante de um enorme sofrimento, o Sr. Bolinha estava sempre rindo e ainda fazia brincadeiras com os outros, cutucando os pés dos transeuntes e se arriscando por isso. Meu amigo Xuru dizia que, se ficasse rico, iria adotar o Sr. Bolinha porque achava ele muito maneiro. Não tenho dúvidas: se tivesse enriquecido, Xuru faria isso mesmo. 

O Sr. Bolinha ria muito, em pleno sofrimento. Um dia sumiu. Ninguém fala mais dele. Morreu provavelmente. Quem se preocupa com alguém que sofre na rua? Pensar em sua risadinha acaba sendo um alívio para este fim de domingo com futebol na TV, desesperos e certa melancolia, porque o fim do domingo nos lembra que daqui a pouco começa tudo outra vez, a roda do sistema nos atropela e preferimos que tudo passe rápido para podermos descansar daqui a alguns dias, isso para quem pode descansar. 


TEXTO DE:

@pauloandel

Nenhum comentário:

Postar um comentário