Outro dia, estava arrumando meus livros e pensei: quantos deles me mantiveram viva sem nem saber?
Não estou falando de romances fofos, nem de aventuras épicas. Estou falando daquela literatura estranha, escura, que dói quando a gente lê.
Aquele tipo de livro que não conforta, mas que entende. Que não tenta consertar você, só te oferece uma cadeira ao lado e diz: senta aqui, eu também já não vi sentido em nada.
A literatura de cura — se é que a gente pode chamar assim — não é feita por quem está bem. Ela nasce da beira. Da beira da cama, da beira da sanidade, da beira do mundo.
Vem de quem escreve porque não tem mais onde pôr a dor, e a dor precisa sair por algum lugar.
Não é um gênero oficial, ninguém vai encontrar uma estante com esse nome na livraria. Mas ela existe — e como existe. É um estilo que escapa das categorias rígidas. É prosa, é poesia, é diário, é confissão, é lampejo. Às vezes, tudo isso junto. É literatura escrita a partir da dor, não sobre ela. E isso faz toda a diferença.
Eu descobri esses textos como quem encontra um esconderijo. Eram palavras pesadas, sinceras, cheias de falhas e pausas. Palavras que não tentavam fingir que tudo ia ficar bem — e, curiosamente, foi isso que mais me acalmou. Porque a pior solidão é pensar que só você sente esse buraco no peito, esse cansaço sem nome, essa vontade de desaparecer sem barulho.
Esses livros, essas vozes anônimas escritas em páginas impressas, nunca me prometeram a cura. E talvez seja por isso que funcionaram. Porque a cura, se vem, vem devagar, por migalhas. Um parágrafo que faz sentido. Uma frase que diz exatamente o que você nunca conseguiu explicar. Uma personagem que também tem medo de se olhar no espelho.
A literatura de cura não resolve a dor — ela divide. E só quem já esteve quebrado sabe o alívio que é não carregar tudo sozinho.
Hoje, ainda escrevo às vezes. Não porque esteja curada. Mas porque aprendi que, quando a dor vira palavra, ela dói um pouco menos. E leio também, porque compreendi que a cura, se existe, não é um destino — é um processo. E nesse processo, a literatura é um dos caminhos que me dá chão. Ou ao menos, palavras suficientes para não cair. E se, no meio desse processo, alguém ler o que escrevi e sentir o mesmo alívio que um dia senti... então talvez, só talvez, a gente esteja salvando uns aos outros, um pedaço de cada vez.
Se eu pudesse escrever tudo numa rede social, nem assim eu o faria. Mas depois de alguns dias de reflexão, principalmente depois dessa semana em que minha filha precisou de mim e pela primeira vez eu não tive forças de me levantar por ela, lembrei do porque escolhi ter minha família ao meu lado.
Lembrei da pessoa que eu era antes de entrar para o Serviço Público. Decidi que preciso dela de volta. Por todos nós.
Então, se eu começar a fazer ou disser coisas que algumas pessoas talvez não estejam acostumadas, não é que eu enlouqueci. É que eu cresci. Acontece as vezes. E quando acontece, eu saio cortando tudo na lâmina. Mas não falo de ferir o corpo — falo de outra lâmina.
Uma mais fina, mais silenciosa, que corta por dentro: a palavra.
A coragem de dizer, com todas as letras. A raiva que eu não disse. O luto que eu fingi engolir. O cansaço que sorri por cima. A sensação de não caber. De não ser o bastante. De não ter saída. Como quem entende, finalmente, que esconder a dor só faz com que ela apodreça. O que não digo apodrece. O que engulo vira nó. O que escondo cria raiz no escuro. Então eu abro.
Com a caneta, com os dedos, com o grito mudo.
E deixo escorrer.
Deixo sair.
Cada frase: um rasgo. Cada verso: uma ferida limpa. Cada ponto final: um fio de cura.
E no fim, estou viva.
Mais viva do que antes do corte.
Se você chegou até aqui, espero que esse desabafo também te cure um pouquinho.
TEXTO DE:
CORA DESCORADA
Cora Descorada é mulher, mãe, mas não é tão mulher assim pois tem bigode (e quem já teve vó, save que com muljer de bigode nem o diabo pode), é pensadora, mas não feminista que é para não ser taxada de histérica e acavar não sendo lida.
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