Trata-se de um tema arrepiante, este da convocação de um Congresso dos Desaparecidos, em que os mortos vão se reunir, discursar e lançar um manifesto. O tempo passa, ditaduras e governos democráticos se sucedem e de vez em quando somos lembrados da existência destes fantasmas, como se estivessem encobertos por uma espessa nuvem obscurantista. Deles ouvimos, esporadicamente, apenas sussurros e ruídos, trazendo de volta parte de uma história infame banida de nossa memória.
São homens e mulheres, grande parte deles jovens, que não figuram nos compêndios oficiais de História. Sua breve trajetória entre nós, violentamente interrompida por agentes policiais a serviço do Estado ditatorial, ainda não virou filme nem chegou aos palcos de um teatro. Seus corpos foram enterrados clandestinamente. Os assassinos perdoados, anistiados de antemão.
Mas agora acaba de sair um livro que anuncia a realização do Primeiro Congresso Nacional dos Desaparecidos Políticos. Algo tão tenebroso que só mesmo uma literatura de ficção poderia enfrentar, tal a estupefação a que somos transportados. Circula uma lista oficial de convidados, que pretende reunir os despojos de 240 pessoas, cujas mortes foram, depois de anos de luta, certificadas pelo estado ditatorial. Uma ficção entrelaçada com a realidade, num tom que se afasta do kafkiano.
Embora o tema seja do meu interesse, senti um sobressalto quando dei com o titulo do recém-lançado livro do Bernardo Kucinski, O congresso dos desaparecidos, Editora Alameda. Lido há anos com esses personagens, seja em minha atividade política, na vida profissional ou como integrante de uma Comissão da Verdade. Com eles mantenho um contato subjetivo que vez por outra aflora. Eu mesmo já escrevi e publiquei aqui no JB e no Ultrajano, uma carta aberta a dois deles, Rubens e Mário.
Pertencem a uma mesma geração, a que combateu nas trevas. Em alguns momentos cruzei com eles nesta atormentada travessia, e pude testemunhar o discernimento intelectual e a coragem política com que se entregaram às suas ideias revolucionárias de justiça e transformação social.
Ao invés de lhes ter enviado uma carta, como fiz, poderia ter tentado um contato mais rápido, através de um e-mail ou uma mensagem de WhatsApp, mas os dois não chegaram a este tempo de manejar computadores e celulares. Todavia, não tinha o endereço. O último que possuí é o de um quartel do Exército na Tijuca, subúrbio do Rio, que continua em poder de seus antigos proprietários. Sei o endereço, estive lá duas vezes, rua Barão de Mesquita, 457, CEP 20540.003 O problema é que os militares jamais reconheceram Rubens Paiva e Mário Alves como seus hóspedes, e iriam devolver prontamente a correspondência.
A solução que então encontrei foi imprimir o texto, colocá-lo dentro de um antigo envelope azul de uso dos Correios, fazer a subscrição e enfiar a carta dentro de uma garrafa de vinho. Joguei a garrafa nas águas do mar, do alto das pedras do Arpoador.
Ainda não li o livro de Kucinski, celebrado autor de K. Relato de uma busca, lançado em 2011. Livro em que ele transforma em literatura a história real vivida por um pai, o seu, ao tentar a todo custo descobrir o paradeiro da filha, vítima da engrenagem ditatorial brasileira. A última vez em que foi vista, a professora Ana Rosa almoçava com o marido, Wilson Silva, também professor e militante, num restaurante na Praça da República, em São Paulo.
De repente foram arrastados, massacrados e desapareceram. O horror de Kucinski deveria integrar nossa memória, estar presente em nossas consciências. Durante a ditadura civil-militar de 1964/85 o desaparecimento de pessoas tornou-se algo trivial, executado às escondidas nos porões do Estado. Experimente falar disto hoje para um jovem já assombrado com as chacinas nas escolas, criação do neofascismo bolsonarista.
Ana Rosa, Wilson, Mário, Orlando Bonfim, Rubens, Carlos Alberto de Freitas, Luiz Alberto Bebeto, Fernando Sandália, Ana Maria Nacinovic, André Grabois, Aurora Nascimento, Ramires Maranhão, Dinalva Teixeira e tantos outros fantasmas confirmaram presença. Eles se olharão nos rostos uns dos ouros tentando se reconhecer. Subirão à tribuna para denunciar seus últimos momentos e revelar os nomes de seus algozes.
O Congresso acontecerá na catedral da Sé, local simbólico onde foram realizadas missas por presos assassinados na tortura. O ato será encerrado com uma verdadeira apoteose, a execução de A Sagração da Primavera, de Stravinski, pela Orquestra Sinfônica Brasileira. Um coral de dominicanos entoará A sagração dos desaparecidos. Espera-se ampla cobertura da imprensa.
TEXTO DE:
Álvaro Caldas
Jornalista e escritor, autor de Tirando o capuz
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