Jucilene tem 24 anos e é empregada doméstica numa casa em São Francisco, bairro nobre de Niterói. Os patrões de Jucilene são montados na grana.
Uma das responsabilidades do seu ofício é cuidar do quarto, da alimentação e das roupas de Juliana, 22, filha do casal e estudante da Fundação Getúlio Vargas.
Jucilene chega às oito e sai às dezessete. Mora em um bairro distante do município vizinho de São Gonçalo. De segunda à sábado enfrenta quatro horas de trânsito: duas pra ir, duas pra voltar.
Apesar da rotina extenuante, nunca reclama. Com os trancos e pancadas da vida aprendeu que reclamar atrasa, tira forças e, pior: não adianta nadica de nada.
Não reclama nem da volta pra casa, quando desce do ônibus e ainda precisa andar mil e duzentos metros por ruas escuras e vazias até chegar ao barraquinho que divide com os filhos.
No caminho, não é incomum topar com duas ou três velas iluminando o semblante impassível de um cadáver.
É que Jucilene mora em um dos loteamentos mais povoados, não só do Brasil, mas de toda a América Latina.
Talvez por isso, por habitarem um mundo à parte, com regras não positivadas específicas desse mundo à parte, as pessoas resolvam seus conflitos na base da violência.
Morre-se muito por lá.
Mata-se muito também.
E fica tudo por isso mesmo.
Enquanto caminha, Jucilene vai rezando.
Tem muita fé em Nossa Senhora Aparecida e sonha em se juntar a um comboio de romeiros para pagar a dádiva de ter se livrado do ex-marido - que lhe deixou dois filhos lindos e quatro costelas quebradas.
Cadê dinheiro para pagar a excursão ? Nunca sobra. Ela é sozinha de todo. Aprendeu a contar apenas com a própria força e até que tem conseguido tocar a vida direitinho.
A santa pode esperar.
Depois de abraçar os filhos é hora de enfrentar a segunda parte da jornada diária... e dá-lhe vassoura, tanque e fogão! Quando termina está tão cansada que mal consegue ficar em pé. Porém, sempre encontra tempo para afagar as crianças e fingir que ajuda no dever de casa.
Ela só finge, mas não é por mal.
É que Jucilene começou a trabalhar aos oito anos e teve que deixar a escola para sustentar a si e aos quatro irmãos menores. Os pais eram alcoólatras. Viviam jogados por aí, cambaleando pela rua. Só apareciam pra curar ressaca e distribuir pancada. De vez em quando, o dinheirinho que ela ganhava ia parar no balcão de um botequim e a família toda ia dormir de barriga vazia.
Mas ela não guarda ressentimento. Os pais já morreram. Dois dos irmãos, também. Jucilene acredita que na vida tudo passa, tanto as coisas boas quanto as ruins. Hoje, quando se olha no espelho, vê uma mulher forte e decidida, que luta para que os filhos tenham oportunidades na vida. Ao menos, que não precisem sentir vergonha na hora de ler ou de assinar um documento.
Juliana dorme num quarto de artista.
Há dois anos, reformou o ambiente e pregou um mural de aço escovado com fotos da família e dos amigos. Muito moderno. Fotos no Outback, no churrasco da Flavinha, com a galera do intercâmbio em Perth, na Austrália. Juliana sente saudades dos amigos que não vê mais com tanta frequência após o início da faculdade. O curso é muito puxado. De vez em quando ela surta e pensa em jogar tudo pro alto. Afinal, que vida é essa em que ninguém tem tempo prum cappuccino com os amigos?
Jucilene também sente falta de muita gente.
Infelizmente, a saudade que sente não pode ser amenizada com um café no Starbucks.
Ou em lugar nenhum.
O pior receio de Juliana é ser assaltada no volante de seu Jeep branco. Por isso, pegou um modelo básico, sem tantos acessórios. Juliana odeia viver no Brasil e lamenta a hora em que seus antepassados entraram num navio pra vir pra esse fim de mundo abandonado por Deus.
O pior receio de Jucilene é que o filho mais novo siga o exemplo dos tios e resolva se empregar na empresa mais rentável do bairro, a única que oferece ascensão imediata, dinheiro a rodo, prestígio e tênis da moda.
Só que o filho de Jucilene nem chegou a conhecer os tios. Pouco antes dele nascer, veio a empresa concorrente e deu baixa na carteira deles.
Juliana também viu a morte de perto. O avô, de 78 anos, bateu as botas em setembro de 2014. Diverticulite.
Foi o pior dia da vida dela.
Às vezes, Juliana se olha no espelho e vê o reflexo de uma alma antiga.
Juliana não conhece ninguém que tenha tido problemas com a justiça.
Jucilene conhece poucas famílias em que ao menos um membro não esteja cumprindo pena por alguma coisa. Na dela são 2: o cunhado ( art. 157 ) e um primo ( art. 33 da 11343/06 ).
Ela não pensa muito nisso.
É só uma coisa que acontece.
No bairro dela, quando o vírus da miséria encontra o hospedeiro da revolta, acontece o tempo todo.
Juliana e Jucilene moram a 80 km de distância, mas vivem em mundos diferentes, irreconciliáveis.
Suas vidas se tocam, mas não se encontram.
Uma certa corrente ideológica garante que Jucilene - a despeito de suas diferenças óbvias - tem exatamente as mesmas possibilidades de desenvolvimento e ascensão social que Juliana.
Jucilene nunca ouviu falar em meritocracia, mas, se tivesse tido a chance, provavelmente entenderia que o conceito de meritocracia é perverso por vários motivos, entre eles por ter sido criado pelos ricos para convencer os pobres de que a servidão, além de natural, é merecida e necessária.
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