O Natal, no Brasil, já não é uma celebração cristã. É um evento antropológico.
Não se cultua o Cristo; cultua-se o EU.
Jesus aparece apenas como álibi retórico, um selo religioso para legitimar a festa do excesso, da autopermissão e da hipocrisia social.
A cena é conhecida: mesas monumentais, álcool em abundância, música alta — não raro com letras que fariam corar qualquer catequista — e discursos inflamados sobre “o verdadeiro sentido do Natal”.
O verdadeiro sentido, ao que parece, é não se conter. A virtude teológica do domínio próprio foi substituída pela virtude pagã do “mereço”.
Cristo nasce pobre, discreto, fora do centro do poder.
O Natal moderno nasce barulhento, autocentrado e profundamente vaidoso.
Não é o culto ao Deus que se faz homem; é o culto ao homem que se faz deus por uma noite.
O cristianismo do presépio foi trocado pelo cristianismo do espelho.
Fala-se em Jesus, mas pratica-se outra religião: a da satisfação pessoal. O mandamento não é “amar ao próximo”, mas “não me julgue”.
A ética do Evangelho, que exige renúncia, virou um detalhe inconveniente. Afinal, quem quer um Cristo que confronte hábitos, denuncie excessos e exponha incoerências?
O curioso — ou trágico — é que essa hipocrisia não é percebida como tal. O discurso religioso serve como anestésico moral.
Brinda-se “ao menino Jesus” enquanto se ignora tudo o que ele ensinou depois de crescer. O nascimento é celebrado; a mensagem, arquivada. O presépio é montado; o Evangelho, silenciado.
Trata-se de um cristianismo sem cruz, sem exigência e sem transformação. Um cristianismo de ocasião, domesticado, que não incomoda consciências nem desafia estruturas.
Jesus, nesse contexto, não é Senhor — é figurante. Serve para enfeitar, não para governar.
Talvez por isso o Natal precise ser tão barulhento. O silêncio, como sempre, é perigoso. No silêncio, alguém poderia lembrar que aquele que nasceu numa manjedoura jamais confundiu fé com festa, espiritualidade com excesso ou amor com autopromoção.
No fim, o problema não é a ceia, nem a música, nem a celebração em si.
O problema é chamar de cristão um culto que tem o homem no centro e Cristo na moldura. Isso não é Natal. É apenas mais uma reunião em homenagem a nós mesmos — com Jesus como convidado que ninguém escuta.
Ao culto do eu soma-se outro fenômeno ainda mais grave: a instrumentalização da Fé por um projeto político que transformou o cristianismo em plataforma de ressentimento.
Não se trata mais apenas de esquecer Jesus — trata-se de usá-lo contra tudo o que ele ensinou.
O bolsonarismo não criou essa hipocrisia religiosa, mas deu a ela método, linguagem e agressividade. Onde o Evangelho propõe amor ao próximo, introduziu-se o ódio como virtude cívica. Onde Jesus ensina misericórdia, vendeu-se a crueldade como sinal de coragem. O que era mandamento virou slogan; o que era ética virou arma retórica.
No Natal desse cristianismo deformado, Cristo continua figurante. A centralidade é do homem ressentido, armado de certezas morais e vazio de compaixão.
Não é mais o Deus que se faz servo; é o fiel que se faz juiz. A cruz foi substituída pelo palanque, o sermão pelo ataque, a Fé pelo alinhamento ideológico.
Criou-se, assim, um cristianismo sem Cristo, mas com inimigos muito bem definidos.
Ama-se “a família”, desde que ela caiba num modelo autoritário. Defende-se “a vida”, desde que ela não seja a do pobre, do indígena, do negro, do migrante ou do adversário político.
Fala-se em “valores cristãos” enquanto se justifica a violência verbal, simbólica e, não raro, física.
O Natal, nesse contexto, vira o ápice da contradição. Celebra-se o nascimento daquele que disse “bem-aventurados os mansos” com discursos que glorificam a força bruta.
Louva-se o príncipe da paz embalado por uma retórica de guerra cultural.
Brinda-se ao amor enquanto se legitima o ódio — desde que esteja bem justificado, de preferência em nome de Deus.
Essa perversão não é acidental; é funcional. Um cristianismo exigente, que cobra coerência moral, solidariedade concreta e limites ao poder, não serve a projetos autoritários. Por isso, precisa ser domesticado, reduzido a símbolo identitário e esvaziado de conteúdo ético.
Jesus, assim, vira marca, não mensagem.
O resultado é um Natal ruidoso, agressivo e profundamente autocentrado. Muito barulho para abafar a consciência. Muito discurso religioso para esconder a ausência de prática cristã. O presépio permanece, mas agora como peça decorativa de uma Fé que já não reconhece o carpinteiro de Nazaré.
No fim, a questão não é política — é teológica. Quando o ódio passa a ser virtude e a exclusão vira princípio, já não se trata de cristianismo, mas de idolatria.
Idolatria do homem, do poder e da própria raiva. E isso, convém lembrar, foi precisamente o tipo de culto que Jesus jamais abençoou — nem no Natal, nem em qualquer outro dia.

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