A frase de Luciano Huck pedindo que os indígenas limpassem a cultura de vocês aí ao retirar celulares e roupas modernas não é apenas um deslize verbal.
É a manifestação de uma lógica que permanece viva no imaginário brasileiro e que transforma povos originários em personagens fabricados para consumo público.
Essa fala revela a continuidade de um olhar colonial que enxerga culturas indígenas como peças de museu e não como realidades vivas, dinâmicas e em constante transformação.
Quando um apresentador multimilionário se sente autorizado a determinar como um povo deve se apresentar diante das câmeras, ele repete a antiga hierarquia que sempre colocou a branquitude no centro da definição do que é legítimo.
A orientação para que celulares fossem escondidos não busca autenticidade. Ela busca reforçar a fantasia de um indígena congelado no tempo.
Essa exigência ignora que toda cultura muda e incorpora elementos novos ao longo das gerações. Ao negar essa mudança, a fala de Huck atua como um tipo de patrulha identitária colonial que tenta controlar a autoimagem de comunidades historicamente silenciadas.
A frase limpem a cultura não limpa nada.
Ela revela um gesto de sujeira simbólica que distorce a relação entre quem filma e quem é filmado.
Huck não queria mostrar a cultura indígena como ela é. Queria uma versão estetizada e exotizada que se encaixa no imaginário confortável da televisão. É a tentativa de ajustar vidas reais ao roteiro que a branquitude espera ver.
Essa prática esvazia sujeitos e os transforma em cenário. A violência simbólica está justamente nessa transformação. A autonomia indígena é substituída pela estética que o entretenimento considera vendável.
A assimetria de poder fica evidente. Um comunicador com alcance nacional molda identidades alheias de acordo com o interesse da indústria televisiva.
Enquanto isso, os mesmos povos que o país insiste em representar como figuras folclóricas continuam lutando por terra, respeito e direitos básicos.
O Brasil deseja indígenas para a fotografia, mas não para a política. Quer adorno, mas não quer escutar suas demandas. Quer rituais, mas não quer reconhecer demarcações.
O problema não está apenas na frase de Huck. Está no que ela escancara sobre a sociedade brasileira.
Ainda se espera que indígenas performem uma pureza inventada enquanto a população que consome entretenimento se recusa a enxergar a complexidade desses povos.
A fala revela a preferência nacional pela fantasia em vez da realidade.
Indígenas que usam tecnologia ou que transitam pelo mundo contemporâneo são frequentemente tratados como se tivessem perdido sua identidade, o que é uma completa distorção sociológica.
No fim, a gravação apenas confirma algo que o país insiste em não admitir. Não é a cultura indígena que precisa ser limpa.
É a nossa dificuldade histórica de aceitar que ela é plural, contemporânea, potente e resistente apesar de séculos de apagamento.
TEXTO DE:
Beta Bastos

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