quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

O Evangelho Segundo os Canalhas: o uso da Bíblia para justificar política suja

A Bíblia, esse livro milenar que sobreviveu a impérios, cismas, concílios e heresias, finalmente encontrou no Congresso Nacional brasileiro seu mais improvável destino: o de manual jurídico alternativo, usado entre um aparte e outro para justificar ilegalidades com verniz celestial.

O problema não é a . O problema é o golpe hermenêutico.

Deputados e Senadores descobriram que citar versículos no microfone tem um efeito curioso: suspende o constrangimento.

Onde deveria haver Constituição, entra o Levítico; onde se exige legalidade, surge Deuteronômio arrancado do contexto; onde a lei pede provas, apresenta-se uma parábola pervertida.

O Estado é laico, diz a Constituição. Mas, no plenário, ele se converte com facilidade suspeita.

A Bíblia virou álibi retórico.

Serve para justificar ataques ao Supremo, deslegitimar eleições, negar direitos civis, atacar minorias e relativizar crimes — tudo em nome de um Deus que, curiosamente, nunca é citado quando o assunto é justiça social, honestidade administrativa ou amor ao próximo. Esses versículos, ao que parece, ficaram fora do pacote.

E então entra em cena o bolsonarismo, esse fenômeno político-teológico que misturou ressentimento, antipolítica e messianismo barato.

O ex-capitão não apenas foi adotado por setores do meio evangélico: foi ungido, elevado à condição de instrumento divino, apesar de uma biografia que desaconselharia até um cargo de síndico. 

Milagre? Não. Marketing religioso.

Pastores viraram cabos eleitorais; púlpitos se transformaram em palanques; cultos, em comícios.

A Bíblia passou a ser lida como panfleto ideológico, e Jesus, se resolvesse aparecer, provavelmente seria acusado de comunista. Afinal, amar inimigos, defender pobres e condenar hipócritas nunca foi muito popular entre os novos fariseus de Brasília.

O mais grave não é o uso político da religião — isso é velho como o Império Romano. O escândalo é a banalização do sagrado para justificar o profano: ataques à democracia, desprezo pela ciência, flerte com o autoritarismo e, em alguns casos, a tentativa explícita de blindar condutas que a lei penal descreve como sendo crime com clareza suficiente para dispensar exegese bíblica.

Não se trata de perseguir evangélicos — seria intelectualmente desonesto e moralmente baixo. Eu inclusive sou um deles.

Trata-se de denunciar a instrumentalização da por lideranças religiosas e políticas que confundem Deus com projeto de poder e a Bíblia com código penal seletivo.

A Constituição não é um apêndice das Escrituras.

O Congresso não é uma igreja.

E o Estado Democrático de Direito não se submete a revelações particulares, muito menos às que surgem convenientemente em véspera de votação ou investigação.

Se a Bíblia ensina alguma coisa — e ensina muitas — é que falsos profetas existem.

E costumam falar alto, com a Bíblia aberta na mão e a Constituição fechada na consciência.

Na esteira de toda essa confusão, vem a participação das igrejas. Pastores deixaram de lado a pregação do Evangelho e passaram a atuar como cabos eleitorais.

Sempre usando versículos de vingança e punição divina. Porque afinal de contas, o adversário político merece a morte.

Mas quando os crimes e falcatruas de seus ungidos vêm à luz, surgem como de uma cartola mágica justificativas espirituais: perseguições do Inimigo, provas e tentações espirituais.

E caso o crime seja muito grave e a justiça acaba por colocar seu aliado atrás das grades, o discurso de punição é substituído por perdão e amor.

Tudo devidamente homologado com trechos de passagens bíblicas mesmo que um pouquinho deslocadas, pois afinal, os ouvintes nem mesmo lêem mesmo.

Aliás, observando a quantidade de citações bíblicas usadas de maneira indiscriminada, chego a pensar que nem mesmo os pastores andam lendo a tão usada Bíblia.

Isso promete piorar em 2026, ano eleitoral. Pois esses pastores "tomarão o reino de Brasília à força" se for preciso.

E para cristãos como eu, que prefere ouvir o Evangelho no púlpito e não no palanque, a saída vai ser abandonar a igreja, pois nela, o púlpito, o palanque e a hipocrisia se levantarão como a santíssima trindade da política brasileira.


TEXTO DE:

Tarciso Tertuliano

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