O Brasil é mesmo um país admirável.
Consegue produzir jabuticaba, orçamento secreto e, agora, uma nova modalidade de ficção jurídica: a dosimetria sem juiz.
A Câmara aprovou, o Senado confirmou e o governo — sim, o governo — patrocinou o acordo que resultou no famigerado PL da Dosimetria. Sob a coordenação política de Jacques Wagner, diga-se. Não é detalhe. É agravante.
Comecemos pelo básico, já que o óbvio anda precisando de aula de reforço.
O artigo 59 do Código Penal estabelece que o juiz fixará a pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, considerando culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos e circunstâncias do crime.
Isso não é poesia. É técnica jurídica. É individualização da pena — princípio consagrado no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal.
Pois bem.
O PL aprovado decide que tudo isso é… exagero.
O magistrado, coitado, estaria “livre demais”. Melhor amarrá-lo. Afinal, juiz pensando é sempre um perigo, não é mesmo? Melhor que ele apenas some frações, ignore o contexto e finja que um assaltante ocasional e um líder de organização criminosa são quase primos distantes.
O texto aprovado faz o milagre inverso ao do Direito Penal moderno: desconstitucionaliza a dosimetria sem dizer que está fazendo isso. Engessa a primeira fase da pena, transforma circunstâncias judiciais em itens decorativos e cria um sistema de pontuação que faria inveja a campeonato de futebol de botão. Só falta o VAR penal.
E tudo isso sob o argumento nobilíssimo do “combate a abusos”. Ora, abusos se combatem com controle, recursos e jurisprudência — não com a mutilação do poder jurisdicional.
O STF já decidiu reiteradas vezes que a dosimetria é matéria de discricionariedade vinculada do juiz, desde que fundamentada (vide HC 118.533, HC 176.473, entre tantos outros). Mas quem liga para a Corte Constitucional quando há acordo político em jogo?
A pergunta incômoda é: quem ganha com isso? O pequeno infrator? Não.
O réu primário? Já tem benefícios legais.
Quem ganha é o reincidente profissional, o criminoso organizado, o corrupto serial — aquele que sabe navegar como ninguém entre brechas legais, bons advogados e prazos prescricionais. A eles, o Congresso oferece previsibilidade. Ao cidadão comum, oferece discurso.
E aqui entra o componente tragicômico. Parte da esquerda institucional, que passou anos denunciando o “Direito Penal do inimigo”, agora ajuda a criar o Direito Penal do amigo. O amigo certo, claro. O que tem foro, recursos e tempo. O punitivismo era um problema quando atingia os “nossos”. Agora, a leniência virou virtude republicana.
Jacques Wagner sabe disso tudo. Não estamos falando de um neófito.
Wagner conhece a Constituição, conhece o Código Penal, conhece o STF e conhece, sobretudo, o Congresso que tem.
Se articulou o acordo, não foi por ignorância. Foi por cálculo. O problema é quando o cálculo político atropela o cálculo constitucional. E atropela o próprio Governo do qual faz parte da base.
No fim, sobra a ironia maior: vendem o projeto como avanço civilizatório, mas ele afronta o princípio da individualização da pena, esvazia o artigo 59 do Código Penal e convida o Judiciário a atuar como mero carimbador de sentenças pré-fabricadas. Isso não é garantismo. É comodismo legislativo travestido de técnica.
Depois, quando a criminalidade organizada agradecer — em silêncio, claro — ninguém sabe por quê.
No Brasil, a lei continua sendo dura.
Não para todos. Apenas para quem não senta à mesa do acordo.
TEXTO DE:
Tarciso Tertuliano

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