terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Solução

João José, de batismo. Nome todo: João José de Sousa. Nascido no estado da Guanabara, no bairro do Encantado. Atualmente conta 22 anos; é um rapaz honesto, de bom caráter e que sempre ajudou a família. O pai morreu quando ele ainda era menino e, por isso, desde cedo aprendeu a trabalhar para ajudar a mãe e duas irmãs menores. Vendeu pastel na estação do Encantado, foi boy de escritório, contínuo de banco - tudo na época em que fazia o curso ginasial de noite.
Sempre foi um rapazinho esperto e logo percebeu que era preciso estudar para ser alguma coisa na vida. Mas nunca teve ilusões: era preciso trabalhar e estudar ao mesmo tempo. A família era unida e todos se ajudavam mutuamente. A irmã mais velha está noiva de um colega seu, que também é bom rapaz. Em suma: para João José a vida era dura mas não intolerável. Era um bom aluno de Farmácia, um dos mais aplicados da turma, e ia se virando para pagar as anuidades, os livros, e tudo que precisava, enfim, com o soldo da Polícia Militar. Bom soldado também. Antes tinha sido um bom atleta e não foi difícil passar nos exames para a PM. Lá, ao menos, comia de graça, tinha farda de graça e ainda soldo.
No dia em que foi mais sangrenta a luta entre os estudantes e polícia, estava de folga no quartel. Nem soube de nada. Aproveitara o dia para repassar a matéria de química. A faculdade estava fechada, todos em greve, uma lástima. João José se dividia em seus afazeres com um zelo raro. Estudou até tarde e acordou tarde, também.
Foi a mana mais moça que lhe invadiu o quarto com um café cheiroso e um sorriso fraternal, chamando-o vagabundo, dizendo que aquilo não era hora para pobre estar na cama. Levantou-se fazendo cara de bandidão e avançou para a menina, como se fosse triturá-la por tê-lo despertado. A irmã colocou o café na mesinha tosca e deu um gritinho. Ele a alcançou e pôs-se a fazer-lhe cócegas, enquanto a chamava de bruxa. Ela conseguiu desvencilhar-se e saiu rindo para o corredor, gritando que "João José está maluco! João José está maluco!".
Ainda não estava.
Depois do banho foi beijar a mãe na cozinha e viu o jornal, num canto. Apanhou e pôs-se a ler. Logo no cabeçalho dos noticiários percebeu que seu plano de ir até a faculdade saber das novidades e depois se apresentar no quartel ( ia dar plantão ) era inexequível. A mãe disse-lhe qualquer coisa que ele não percebeu o que era, porque mergulhou na leitura e foi quase inconscientemente que voltou ao quarto, sentou-se na beira da cama e ficou lendo.
Leu tudo de um fôlego, às vezes sem acreditar no que lia, mas tendo que continuar a leitura, tal era a sua curiosidade, tal era a sua estupefação. João José - homem honesto e correto - depois de ler tudo, olhou para as fotografias, reconheceu policiais, reconheceu vários colegas de faculdade. Começou a ler de novo, correndo a lista de presos, a lista de feridos.
Já não sabia mais de si mesmo; não sabia se tinha sido direito dormir o sono que, na noite anterior, seu organismo pedia. Se só menos soubesse antes! Claro que não iria dormir, mas onde teria se apresentado? Ao grupo de colegas que o havia procurado, na certa, e que só não o encontrara porque não tinha telefone e morava num subúrbio... ou teria ido para o quartel? Lá, certamente, todos sabiam com antecedência que o pau ia comer e aguardavam sua apresentação. Muitos companheiros deviam ter saído para o centro das hostilidades pensando que talvez o encontrassem do outro lado, atirando pedras, gritando suas reivindicações.
Como estudante, sabia que o protesto era justo. Tinha acompanhado assembleias, visto como seus colegas insistiram para ser ouvidos serenamente. Como policial, seu dever era cumprir ordens. Correu os olhos pela lista de presos: o Alfredo, o Carlos, a Luisa - moça tão bonita, com estariam tratando-se os agentes do DOPS? De repente viu a notícia da morte do PM Nelson. Puxa, o Nelson! Leu trêmulo: no alto dos edifícios o povo tentou ajudar os estudantes massacrados e algo caíra sobre o Nelson, seu companheiro Nelson, marando-o.
A mãe passou pelo corredor e viu-o nu da cintura para cima, mas com as calças que costumava usar quando ia à faculdade:
- Vai a faculdade, meu filho? - e nem estranhou de não ouvir resposta. Estava muito ocupada com o almoço para notar que o filho estava completamente transformado.
O que devia ter feito meu Deus! Ficado ao lado dos colegas e enfrentar a fúria policial? Juntar-se aos companheiros do quartel, na repressão às manifestações? Ele teria batido? Ele teria apanhado? A ordem de um lado era não ter medo de apanhar; a ordem do outro era não ter pena de bater.
Por cima das calças vestiu o dólmã de PM. Quando a irmã entrou no quarto para arrumar, foi que viu. Saiu correndo, chorando, gritando: "João José está louco! Está batendo de sabre nele mesmo"...
O sangue jorrava do nariz! Da testa!
Não ter medo de apanhar, não ter pena de bater!


ESTE TEXTO PERTENCE A OBRA FEBEAPÁ DO ESCRITOR STANISLAW PONTE PRETA E REPRESENTA DE FORMA INCRÍVEL A ATUALIDADE DO PAÍS