quarta-feira, 5 de julho de 2023

Como nossos Pais, ou não?

 
"Como Nossos Pais" foi lançada por Belchior em 1976 no álbum Alucinação. Mas a canção foi transformada em hino de uma geração por Elis Regina, no mesmo ano, no espetáculo Falso Brilhante, que depois virou LP.

Além dessa Elis cantava “Velha Roupa Colorida”, também do cearense.

"Como Nossos Pais", no entanto, com seus versos contundentes contra a ditadura militar, que vivia um de seus períodos mais truculentos, se tornou um símbolo da juventude inconformada e da contracultura naquele momento: 

"Por isso, cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram e o sinal está fechado pra nós / Que somos jovens".

Hoje a canção foi lançada como jingle num clipe celebrando os 70 anos da Volkswagen do Brasil.

 A peça publicitária traz ainda como protagonista a cantora Maria Rita contracenando com sua mãe, recriada por IA.

A face de Belchior aparece numa camiseta. O mais irônico é que a montadora alemã colaborou com o regime militar no Brasil, facilitou a prisão de funcionários e se beneficiou do modelo econômico implementado pela ditadura.  

Mas, além da crítica ao regime, a música trata especificamente de um conflito de gerações. É uma indireta ácida àqueles que sucumbiram ao poder da grana que corrompe os ideais de juventude:

"E hoje eu sei que quem me deu a ideia / De uma nova consciência e juventude / Está em casa, guardado por Deus / Contando vil metal". 

Aqui entra a questão da memória do compositor e da intérprete. Tenho muitas dúvidas se Belchior, caso estivesse vivo e lúcido, venderia uma de suas músicas mais icônicas como jingle de comercial da VW.

Inclusive porque o roteiro da peça publicitária, usando símbolos icônicos da contracultura, pessoas viajando em kombis nos anos 70, músicos, acampamentos na fogueira, um casal transando dentro de um carro, o ideal de liberdade e toda uma estética hippie, para vender uma ideia diametralmente oposta ao que diz a letra da canção.

Belchior, o compositor atormentado, que inclusive morreu no seu auto-exílio completamente avesso à mídia, à publicidade, a qualquer tipo de concessão ao mercado. 

Elis por sua vez, por mais tentadora que seja a ideia hipotética de cantar junto com a filha que ela não viu crescer, talvez também não aprovasse a ideia de transformar um de seus maiores sucessos, senão o maior, num jingle enaltecendo um empresa alemã que colaborou com a ditadura que ela tanto combateu. 

Mas ela está lá, emocionando as pessoas, incrédulas com as possibilidades da inteligência artificial para promover um carro elétrico, depois de anos de lobby contrário às fontes alternativas promovido pela indústria do combustível fóssil, da qual a VW faz parte.

Além disso a peça apela de uma forma como só a publicidade sabe fazer, à memória afetiva das pessoas. Todo brasileiro nascido antes da virada do milênio já andou num fusca, numa Kombi, numa Brasília, num Karmann-Ghia dos pais, dos avós, de um tio. Mas será que somos mesmo iguais a eles? Não sei, para mim tudo parece meio desonesto e fora de lugar nesse clipe.


TEXTO DE:

Makely Ka, cantor, compositor e escritor

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