O Senado Federal decidiu, em mais uma atitude vergonhosa, aprovar o marco temporal — essa tese jurídica que já nasceu inconstitucional, foi declarada inconstitucional e insiste em circular por Brasília com a vitalidade de um morto-vivo fedorento legislativo.
Nada combina mais com a República do que a tentativa de criar lei para derrubar decisão do Supremo Tribunal Federal, como se a Constituição fosse um catálogo de sugestões e o Judiciário, um departamento de atendimento ao consumidor: “Não gostou da decisão? Protocole um projeto de lei e tente novamente!”
O problema (para quem ainda leva o Estado de Direito a sério) é que o texto constitucional não dá margem para interpretações agrárias da ancestralidade.
O artigo 231 continua lá, inabalável, afirmando que os direitos indígenas são originários. A expressão não significa “a partir de 5 de outubro de 1988”, nem “condicionado ao humor da bancada ruralista”. Significa (e sinto desapontar alguns senadores) anteriores ao próprio Estado brasileiro.
Mas Brasília, terra fértil em ficção jurídica, decidiu que os povos que estavam aqui antes de Portugal agora devem provar presença em data posterior à Constituição. E, se possível, com documento carimbado. De preferência reconhecido em cartório do século XVI.
Raposa Serra do Sol: o caso que eles fingem não conhecer
O Senado finge ter sofrido uma súbita amnésia institucional. Em 2009, no julgamento da Raposa Serra do Sol, o STF estabeleceu parâmetros claros para demarcação de terras indígenas e, ainda que a tese do marco temporal tenha sido ventilada no caso, o próprio Supremo tratou depois de esclarecer que aquela condicionante não se aplicava de forma geral, muito menos vinculante. O Tribunal reafirmou isso com todas as letras em 2023, no RE 1.017.365.
Mas o Senado, sempre tão sensível a nuances constitucionais, decidiu que sabe mais do que o Supremo e que o precedente serve quando convém — e quando não convém, vira mera nota de rodapé. É como estudar para a prova decorando apenas as respostas que favorecem o próprio grupo de interesse. Brilhante método educativo; péssimo método legislativo.
A fábula da “segurança jurídica”
Os defensores do marco temporal adoram repetir a expressão “segurança jurídica”.
No Brasil, poucas frases são tão elásticas. A segurança jurídica defendida aqui é aquela que se aplica ao proprietário sem título que virou dono por decibéis; ao grileiro que virou empreendedor; ao invasor que virou investidor.
Já a segurança jurídica dos povos indígenas, prevista na Constituição e reiterada pelo STF? Essa, infelizmente, continua em falta no estoque.
Cláusulas pétreas: o detalhe inconveniente
Ao tentar limitar direitos originários a uma data arbitrária, o Senado esbarra em um problema nada pequeno: o marco temporal viola cláusulas pétreas, como a proteção a direitos e garantias individuais (art. 60, §4º). Mas Brasília tem um talento inexplicável para fingir que cláusula pétrea é apenas uma metáfora. Como se dissesse: “Pétrea, sim, mas dá para dar uma alteradinha…”
É a tentativa explícita de fazer por via legislativa o que o STF já proibiu por via judicial. E isso, no jargão técnico, se chama inconstitucionalidade. Mas, como se sabe, certas maiorias parlamentares acordam todos os dias prontas para desafiar a Constituição.
A farsa do progresso
Tudo é vendido em nome do “desenvolvimento”.
Desenvolvimento, no vocabulário desse grupo, tem um cheiro inconfundível: gasolina, motosserra e títulos fundiários de origem duvidosa.
O país ainda trata território indígena como obstáculo, não como patrimônio ambiental, histórico e jurídico. É o tipo de atraso que só encontra paralelo em governos que tentam modernizar a legislação enquanto caminham para trás.
O Brasil que pisa no próprio passado
O marco temporal não é só um erro técnico. É um erro civilizatório. É a tentativa de reduzir povos inteiros a um calendário conveniente e transformar esbulho em política pública. Mas a Constituição persiste teimosa, incômoda, lembrando que direitos originários não caducam por conveniência ruralista.
O Senado pode aprovar o que quiser. Pode até reinventar a História. Mas não conseguirá revogar o fato básico:
os povos indígenas estavam aqui antes do Brasil — e estarão aqui depois de mais essa vergonha legislativa.

O duro e lamentável é que sabemos que agem por interesse próprio, que vai além do bem comum passando por cima da história que por muitas vezes vem a ser enfeitada para não ofender o ser de pouca leitura quando contam sobre a chegada dos portugueses parece um conto de fadas.
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