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| primeira foto que eles tiraram juntos no Brasil, em 1958 |
O dia amanheceu e, sem motivo aparente, comecei a cantarolar os versos dos Titãs:
“Família, família... papai, mamãe, titia. Família, família... almoça junto todo dia, nunca perde essa mania.”
Logo pensei nos meus Pais, que em poucos dias completarão 65 anos de casados — mesmo em outra dimensão. Mais que uma vida, uma grande história.
Ambos sobreviveram à Guerra Civil Espanhola e à fome que devastou a Espanha sob Franco e seus falangistas. Meu Pai, nascido em 1931, aos 12 já trabalhava numa fábrica para alimentar os cinco irmãos, depois que o mais velho fugiu para o Canadá. Era o Regueiras — órfão, guerreiro e sonhador.
Minha mãe, nascida em 1935, ficou órfã cedo. Herdou uma pequena fortuna, dilapidada pelos tutores.
Jovens, ambos decidiram fugir daquela Espanha cinzenta e faminta. Ele veio primeiro, lavando pratos para sobreviver.
Um dia me contou: “Nos primeiros anos no Brasil, só tinha uma diversão: os jogos do Fluminense. Quando não havia jogo, comprava uma lata de sardinha e o Jornal dos Sports, ia ao Parque Guinle e pensava na tua mãe.”
Ela chegou em 1958, ainda noiva, trazendo na mala uma tuberculose — herança da miséria — curada em Itaipava. Casaram-se em 1960, num festão espanhol no Rio. Um ano depois, nasci. A essa altura meu Pai havia trazido 2 irmãos para o Brasil, que também fugiram da fome e dos pés descalços.
De lavador de pratos, meu Pai virou dono do restaurante mais famoso do Centro — o Yankee Brasil, na Rua Rodrigo Silva — ponto de encontro da alta sociedade carioca. De uma vaga numa vila da Rua Ipiranga, tornou-se proprietário de um apartamento de 190 m² em Botafogo, pago à vista. Seus dois filhos estudaram no Santo Inácio, o melhor e mais caro colégio do Estado.
Na última madrugada, sonhei com eles — uma lembrança real: quando compraram um terreno para a Maria, que trabalhava conosco, em Santa Isabel. Fizeram isso pouco antes de voltarem à Espanha, em 1986. Maria já se foi, mas seus filhos me seguem nas redes e sempre dizem o quanto nossa família mudou suas vidas.
Pepe e Pura sobreviveram à miséria, mas dela trouxeram o amor e a solidariedade. Um dia, quando revoltei-me com a ingratidão de alguém que eles haviam ajudado, minha mãe disse: “Antonio Carlos, a gratidão não deveria ter prazo de validade. Mas não cobre isso de quem tem o coração pequeno. Quem esquece de onde veio, por mais rico que seja, continua pobre por dentro. A gratidão, quando é de verdade, não morre. Apenas se transforma em luz e memória. Se é falsa, veste-se de trevas.”
Deles herdei virtudes — entre elas, a solidariedade e a gratidão. Sou grato, sempre. Mas não cruzo o caminho de ninguém, nem permito que cruzem o meu.
Repito: sou grato, mas não perdoo quem é filho da puta comigo.
TEXTO DE:
Antonio Gonzalez

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