sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Magrim - Uma Pequena Históra de iFood

Tá lá o garoto às dez da noite. Bermuda humilde, camisa antiga do Flamengo. Garoto negro. Magrim. Magrim.

Nas costas, uma enorme caixa vermelha cheia de comidas pra entregar. E ele nunca vai comer nada daquilo, a não ser que ganhe uma doação.

O jovem rosto carrega um par de olhos tristes, que não se alinham com a história de um garoto. Tudo muito longe...

Dez horas da noite. As ruas do Rio estão cada vez mais vazias, salvo pontualidades. A violência, a pobreza, também a comodidade e o estímulo ao ambiente virtual fazem com que cada vez mais pessoas fiquem em casa.

A boemia é limitada a determinados lugares.

Às vezes, quando tem um jogo de futebol com apelo, os bares lotam. Depois do dia 15 vai ser assim, tem Libertadores. A Seleção joga na sexta, mas ninguém liga. Muitos fatores explicam o desprezo popular, mas tudo começou ao contrário: quando a Seleção passou a desprezar o povo.

Silêncio nas ruas da Tijuca, de Copacabana, do Jardim Botânico, de Madureira, da Ilha do Governador...

O que não para nas mesmas ruas à noite é um exército de garotos voando com bicicletas laranjas (alugadas), procurando informações em smartphones surrados para entregar comidas.

Lá vai o Magrim. O único abraço que ganha é a camisa do seu time de coração - ela não o larga. Deve ter dezesseis ou dezoito anos, ou 22, tanto faz - é garoto do mesmo jeito, há muito pela frente. Mas será melhor?

Cada refeição individual gira em torno de trinta reais ou um pouco mais. Cada entrega dá R$ 1,50, por exemplo, talvez R$ 2,00. Para realizar o sonho de receber uma encomenda de comida da empresa para a qual trabalha - sem vínculo empregatício -, ele teria que gastar o dinheiro de no mínimo 15 entregas, quase 20. Por uma refeição. E as outras? O sonho fica muito distante da realidade.

Mesmo com todos os seus inúmeros problemas, ainda bem que o futebol existe. Sou Fluminense, mas ainda bem que o Flamengo serve para aliviar a dura vida de quem não consegue disfarçar no olhar.

Por incrível que pareça, os mesmos olhos tristes são testemunhas de tristeza ainda maior dos outros. Qualquer passeio de bicicleta à noite no Rio pode ser trajeto das mazelas sociais: gente sem casa, com muita fome, delirando por causa da fome ou de drogas, gente que sofre pra c@r4lh0 mas que se tornou praticamente invisível à sociedade, que troca de calçada durante o dia e pede iFood à noite, ou que até entra e sai das garagens, sem botar os pés na rua.

Com sorte, o expediente vai até meia noite. Daí é guardar a bicicleta (do banco) e ir pra casa. Muitos moram em comunidades e precisam ter cuidado ao chegar. Outros vão para a Presidente Vargas bem em frente à Central e esperam o último ônibus para algum bairro bem longe, às vezes num município vizinho.

Lá vai o garoto. Magrim. Camisa do Mengão, bermuda esgarçada, chinelo gasto e mochila surrada. Senta no meio fio, abre o zíper do acessório, mexe um pouco e saca a comida depois de horas de trabalho. Dois sanduíches do BK custam R$ 30,00, uma quentinha de feijoada também. Não estão ali. Nem um bife, ou pedaço de frango ou uma lasanha, nada disso. A refeição é metade de um pacote de biscoito recheado - a outra metade fica para o café no dia seguinte.

O ônibus chega meia noite e meia. Será um longo percurso até chegar em casa. Driblar perigos. Cansaço. Fome. Desesperança. Isso tudo justifica um par de olhos tristes de um garoto que deveria estar descansando, estudando, praticando esportes e conhecendo artes, mas a realidade é completamente desalinhada da vida exibida na grande mídia. Batemos nossos recordes de emprego, mas muitos postos de trabalho são muito parecidos com o descrito acima.

São milhões de olhos tristes indo e vindo pelas noites do Rio e do Brasil. A maioria nem liga. Quem liga, é impotente para fazer qualquer coisa. Ah, no horário eleitoral alguns candidatos dizem que vão mudar isso tudo, mas como o traficante vai combater o tráfico? Como o miliciano vai combater a milícia?

Antes de chegar em casa, os olhos tristes descansam precariamente - cansado, o garoto cochila no banco do ônibus. É o Brasil que cumpre penas pela condenação de crimes que jamais cometeu. 

TEXTO DE:
@p.r. andel 

(Continua)

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