sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Paz à venda: o Nobel e sua perigosa vocação para o autoengano

E lá vamos nós outra vez.

O comitê do Nobel da Paz, essa instituição nórdica que parece cada vez mais inclinada a confundir coragem com conveniência, decidiu premiar María Corina Machado — a venezuelana que, sem dúvida, tem resistido bravamente ao autoritarismo de Nicolás Maduro, mas cuja consagração revela mais sobre o próprio comitê do que sobre a realidade da Venezuela.

Sim, Corina é símbolo de resistência, e disso ninguém duvida. O problema é outro: é o uso inflacionário do símbolo. O Nobel da Paz, desde há muito, tornou-se uma espécie de selo de intenções, e não de realizações.

É o prêmio da esperança — e, às vezes, da hipocrisia bem-intencionada.

O “Prêmio da Paz” em tempos de guerra simbólica

Não é a primeira vez que o Nobel decide premiar o futuro em vez do presente. Em 1973, Henry Kissinger — sim, o mesmo Kissinger dos bombardeios no Camboja — recebeu o prêmio ao lado do vietnamita Lê Đức Thọ, por um acordo de paz que, ironicamente, não produziu paz alguma. Thọ, aliás, recusou o prêmio. Kissinger, não. Dois membros do comitê renunciaram em protesto. E a guerra continuou.

Em 1994, Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin subiram juntos ao palco de Oslo. Parecia o prenúncio de uma era de fraternidade. Aplaudiram-se as boas intenções. E, pouco tempo depois, o processo de Oslo naufragou. A paz no Oriente Médio — essa fantasia de séculos — continuou sendo a "vida eterna prometida" que nunca chega.

Em 2009, o comitê se superou. Deu o prêmio a Barack Obama, com apenas nove meses de Casa Branca. Por quê? Pelas promessas de campanha. Por sua retórica amável. Foi o Nobel do marketing, a celebração do “branding humanista”. O próprio secretário do comitê reconheceu, anos depois, que talvez tenham exagerado no entusiasmo. Obama é aquele que se sentou na Casa Branca junto com Hillary Clinton e Joe Biden para acompanhar em tempo real o assassinato de Osama bin Laden. Fica a pergunta: fosse Donald Trump, o comitê teria dado a ele o prêmio que tanto ambiciona?

María Corina Machado e a terceirização da esperança

Agora é a vez de María Corina Machado.

De novo, o prêmio não consagra um feito, mas uma expectativa. Premia-se a coragem, o discurso, a resistência. Tudo nobre — mas tudo ainda no plano da promessa.

Corina não conduziu uma transição, não negociou um acordo de paz, não transformou as instituições venezuelanas. Recebe o Nobel não pelo que fez, mas pelo que supostamente representa.

É a estética da virtude. Premia-se uma ilusão, não um resultado.
O Nobel da Paz, ao que parece, virou uma espécie de campanha de relações públicas internacional, em que cada prêmio é um editorial político travestido de homenagem moral.

E há um detalhe incômodo que poucos ousam tocar: quando o comitê norueguês decide, por exemplo, premiar uma figura de oposição a um regime inimigo do Ocidente, ele envia também um recado geopolítico. O prêmio deixa de ser apenas um reconhecimento moral e se torna um instrumento diplomático, um manto ético sobre uma tomada de posição. A paz se torna um paradoxo, um ato de guerra simbólica.

A politização rotineira

Nada disso é novo. O Nobel da Paz sempre foi político — e é bom que seja.

O problema é quando ele se torna partidário. O prêmio que um dia distinguiu Nelson Mandela ou Martin Luther King — homens que produziram paz em meio ao conflito — hoje corre o risco de se transformar num diploma de intenções corretas.

Sim, Corina é corajosa. Enfrenta uma ditadura. Mas a pergunta incômoda é: isso basta para a mais alta distinção moral do planeta?


Se for assim, talvez seja hora de reconhecer também as centenas de jornalistas, ativistas e professores que, em contextos tão ou mais adversos, arriscam a vida sem o mesmo aparato midiático, sem a mesma projeção internacional.

O Nobel parece ter criado sua própria moeda simbólica — e está gastando-a depressa.

O prestígio perdido

Quando um prêmio tão prestigioso se banaliza, perde-se algo mais do que credibilidade. Perde-se o valor da coerência. Se o Nobel da Paz serve apenas para sinalizar as boas intenções de uma elite internacional ansiosa por mostrar virtude, ele deixa de ser o farol moral que um dia pretendeu ser e se torna um espelho de vaidades.

É o mesmo dilema das redes sociais aplicado à diplomacia: o gesto importa mais do que o conteúdo; o aplauso substitui o resultado.

Não se trata de desmerecer María Corina Machado — que, repito, é uma mulher de coragem admirável. Trata-se de criticar um comitê que, cada vez mais, parece seduzido pela estética da virtude e menos comprometido com o critério histórico da paz.

A paz como narrativa

O prêmio dado a Corina pode até ser justo — mas é, antes de tudo, conveniente. Conveniente ao Ocidente, conveniente à própria consciência da Europa liberal que gosta de premiar causas certas, desde que à distância.

O risco é a transformação definitiva do Nobel da Paz em um reality moral, em que o troféu é entregue ao personagem que melhor interpreta o papel de herói.

Talvez o comitê do Nobel devesse, ele próprio, inscrever-se em sua lista de candidatos — afinal, poucos têm feito tanto para simbolizar a distância entre a intenção e o resultado.

E a paz, essa palavra que um dia significou algo sólido, vai se tornando apenas isso: uma ideia bonita, reciclável, rentável — e, por vezes, tristemente banal.


Por:

Tarciso Tertuliano Paixão

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